1991: Quando os Deuses desceram ao estúdio!
Escrito por Tiago Pereira da Silva em 04/05/2025
Há anos que passam como notas soltas. Outros tornam-se acordes eternos. Em 1991, havia algo no ar – não era apenas ozono ou adrenalina. Era o cheiro quente do plástico dos VHS, o som do rewind nos gravadores duplos, o pó das cassetes TDK a rodar como rosários profanos. O mundo parecia ter acordado com feedback na alma. E o som vinha de Seattle, mas também de L.A., de Dublin, de Detroit — de qualquer canto onde uma guitarra distorcida tivesse algo urgente a dizer, antes que fosse tarde demais. As t-shirts colavam-se ao corpo com o suor da febre, estampadas com rostos de deuses pagãos: Axl, Kurt, Eddie. Como se o sagrado tivesse sido substituído por um riff. Não queríamos salvação. Queríamos distorção.
Vivíamos possuídos por uma liberdade crua. Saltávamos muros, esfolávamos joelhos. Lembro-me bem dos fins de semana em Carcavelos, com amigos. Invadíamos prédios em construção, praticávamos parkour sem sabermos o nome. Enganámos a morte sem dar por isso. Cruzávamos bairros de skate como se atravessássemos desertos em busca de som. Não havia telemóveis, GPS ou notificações. Havia apenas um pacto secreto entre anarquia e sorte. “Volta antes do escurecer” era o único mandamento dos nossos Pais. A rádio e a MTV eram oráculos. O walkman, o nosso santuário portátil. E a música não era mero fundo. Era delineação. Era narrativa. Era identidade. Foi nesse cenário que uma avalanche sonora tombou sobre o planeta. 1991 não foi apenas um bom ano — foi uma síncope cósmica. Um momento em que os deuses do rock despejaram o Olimpo inteiro de uma só vez. Vi escrito algures pela internet que em meros 45 dias, chegaram o peso visceral do “Black Album” dos Metallica, o grito inaugural de “Ten” dos Pearl Jam, o adeus sombrio de “No More Tears” do Ozzy, os dois volumes megalómanos de “Use Your Illusion”, o funk febril de “Blood Sugar Sex Magik” e, claro, o trovão cru e existencial do Nevermind. Sou agnóstico, talvez ateu, mas confesso: “meu Deus, que raio caiu na Terra naquele verão?”
E havia mais. Os Spin Doctors ensinavam-nos que groove podia ter ginga universitária. “Two Princes” entrava-nos pelo quarto adentro. Era a rádio, claro. Tornou-se um hino que gritávamos sem entender nada de amor. E o luto transformado em arte? Isso foi Temple of the Dog. Chris Cornell e Eddie Vedder, partilhando fantasmas em “Hunger Strike” — um cântico à dor com harmonia, à fraternidade crua. Lenny Kravitz regressava ao essencial com “Mama Said”. Soul, riffs vintage, sensualidade nova-iorquina. “It Ain’t Over ’Til It’s Over” fazia-nos sonhar com beijos que ainda não sabíamos pedir. E as raparigas do 6.º ano ouviam em loop a balada de Bryan Adams e o famoso refrão: “Everything I Do) I Do it for You” enquanto, nós, nem precisávamos fingir preferir o solo do Slash na canção de Kravitz. Convenhamos: que rapaz de 12 anos queria um amor com floresta e flechas?
“Achtung Baby” não foi só um disco dos U2. Foi uma reinvenção à vista de todos. A banda que antes cantava com punhos erguidos agora dançava com sombras e espelhos. Deixaram o púlpito e entraram na discoteca. “The Fly”, “Mysterious Ways”, “Even Better Than the Real Thing” — tudo soava a noite elétrica. No fundo, eram os U2 a explicar-nos para onde é que a música nos levaria. E “One”, ah, “One”, ainda não era um cliché de casamento, mas uma oração ambígua, a pergunta que ecoa quando tudo à nossa volta parece desmoronar. Terei ouvido mais de mil vezes. Foi o momento em que Bono deixou de ser pregador para se tornar personagem. E isso mudou tudo.
O “Black Album” foi um murro no estômago — mas com luvas de veludo. Os Metallica afinaram as guitarras para um som mais polido, mais denso, mais acessível. “Enter Sandman” abriu as portas ao grande público, “Sad But True” esmagava ossos, mas foram “Nothing Else Matters” e “The Unforgiven” que dividiram o culto. Os puristas gritavam heresia. “Baladas? Os Metallica não podem vende-se às baladas!” Mas estavam errados. O peso emocional desses temas era brutal. A fúria ainda lá estava — só tinha aprendido a articular-se em silêncio. Foi o disco que fez deles a banda mais importante do planeta. E que irritou todos os que achavam que a pureza está no ruído.
Em 1991 a música passou de pano de fundo a protagonista central na vida de todos os jovens da minha geração. Cada faixa era uma catequese pagã: “Alive” exorcizava, “Black” sangrava com elegância, “Under the Bridge” confessava, “Enter Sandman” fazia-nos invencíveis. “Hunger Strike” ensinava-nos integridade — sem se preocupar em ter nexo ou sentimentalismo. Os REM sussurravam “Losing My Religion” com desespero e beleza. E os Van Halen, ah, os Van Halen, eram já quase uns veteranos em “For Unlawful Carnal Knowledge”. Mas eram a minha banda de eleição. Deram-me uma epifania adolescente: “Top of the World”. Aqueles primeiros acordes limpos, solares, a voz de Sammy Hagar a cantar “Oh, I know you wanna touch, I gotta have a little taste. I just wanna sink my teeth in that fine piece of real estate”. E eu, aos 12, a perceber que o céu era uma metáfora com gosto, que os sonhos tinham pernas e desejo. Era uma canção erecta, sem vergonha, que dizia tudo o que nós ainda não sabíamos dizer com palavras. Um hino à antecipação da vida. Era sol em forma de música.
A verdade? Eu, com 11 ou 12 anos, ainda estava emocionalmente estacionado nos Purple em “Child in Time”, na versão ao vivo do “Made in Japan”. E aquela secção intermédia onde Ritchie Blackmore estilhaçava os vidros do universo, ou pelo menos do meu quarto, com um solo de cortar a gravidade. Para quem vinha desse Olimpo, o grunge parecia uma garagem com goteiras. Diziam-me: “Pá, ouves música de antigo.” Talvez. Mas que gloriosa antiguidade. Anos mais tarde, com o tempo a lixar a arrogância e o sacana do preconceito, regressei ao “Nevermind”. Percebi: não era virtuosismo. Era verdade. Dor crua. Fúria. Grito. Conciso e eloquente. Mas era e é magnífico. Poucas vezes num disco vimos um equilíbrio tão grande entre as canções.
O primeiro e único, de todos estes discos históricos, que comprei à época foi “Use Your Illusion I & II” — dois discos lançados no mesmo dia, como se os Guns N’ Roses tivessem decidido que o mundo era demasiado pequeno para os conter. Era excesso, era épico, era ópera em camisa de flanela. Havia ali tudo: fúria, ternura, grandiosidade e caos. “November Rain” era um monumento barroco de dor e vaidade, com um solo filho da mãe; enquanto “You Could Be Mine” trazia o soco direto que nos fazia sentir imortais. Era um mergulho no abismo da alma de Axl Rose, em versão piano de cauda e punhos cerrados. Aqueles álbuns eram um labirinto emocional onde cada faixa parecia gritar: “A vida não faz sentido, mas ouve isto.” Para muitos foi o fim da inocência do hard rock. Para nós, foi só mais uma confirmação: o rock podia ser excessivo e melodramático, mas absolutamente necessário, porque não tinha uma gota de contradição.
E no meio do tsunami rock, surgiu uma revolução pop paralela. “Dangerous”, de Michael Jackson, levava a coreografia a um novo nível de violência doce. “Life is a Highway”, de Tom Cochrane, ecoava nos recreios entre mochilas e leite achocolatado. E, imaginem só, 1991 ainda deu para os Dire Straits, Genesis ou Queen fazerem discos – não obrigatórios – mas engraçados. Descobrir música era arqueologia: gravar da rádio, copiar CDs, decorar letras mal traduzidas. Havia tribos: betos, metaleiros, surfistas, punks, geeks. Como dizia há pouco tempo o escritor português Valter Hugo Mãe, hoje em dia, os miúdos parecem todos filhos dos mesmos pais. Uniformes. Higienizados. Nós éramos mais sujos, sim. Mas vivos. Agora, aos 45, pai de três, olho para trás com ternura. Há algo de comovente em rever aqueles vídeos riscados, em ouvir “Alive” ou “November Rain” como quem reencontra um amor de infância. A música de 1991 não era apenas boa. Era necessária. Era espelho. Era grito. Era casa. O ano em que os deuses desceram ao estúdio, os anjos perderam a virgindade e os demónios aprenderam a escrever uma canção. 1991: a última vez que o mundo pareceu afinado antes da internet o desafinar. E por um breve momento, estivemos todos, mesmo todos, no topo do mundo.
Tiago Pereira da Silva
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