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O legado dos grandes transgressores Americanos

Escrito por em 06/02/2025

Entre o desespero e a grandeza: O legado dos grandes transgressores Americanos, a mais recente crónica de Tiago Pereira da Silva.

Quando era adolescente, sonhava um dia ter uma biblioteca caseira digna desse nome. Qualquer leitor que se preze, vive certamente na angústia dos livros que não irá ter tempo de ler. Como esta fotografia bem denuncia, os livros, na quase biblioteca cá de casa, começam a não ter espaço para se relacionar. Por vezes, dou por mim seguro de que os mesmos para além de “objectos sagrados” como nos cantou Caetano Veloso (precisamente em «Livros») têm também os seus caprichos. O que diriam agora Roberto Bolãno, Javier Marias, Luís Borges ou Cortázar sentados à mesma mesa? Murakami, Valter Hugo, Dylan, Agustina, João Cabral, o MEC, o RAP, Drummond, Sophia, Cesariny, Mário de Carvalho, Agustina, Cortázar, Zafón, etc., etc.

No vasto panteão da literatura Americana do século XX, há escritores que deveriam constar de qualquer biblioteca e que por isso mesmo terão sempre um lugar de destaque nas prateleiras cá de casa. Até indo um pouco atrás, Mark Twain, evidentemente, porque tornou possível toda a literatura anglo-americana do século seguinte. Onde reinaram os dois gigantes da América inglesa: Hemingway e Henry Miller. Mas também John Fante e Charles Bukowski. Só falta mesmo Hunter Thompson e estes últimos quatro estarão, seguramente, do outro lado da vida, sentados num qualquer bar, regados a whiskey e com toneladas de beatas no chão.

Todos concordarão, que na América proibida que eles habitaram, as palavras, por mais sujas e ofensivas que tenham sido foram os seus únicos instrumentos de resistência. Porque, no final, o que seria da escrita se não fosse a transgressão dos limites impostos pela moralidade da sociedade? A linguagem é o último lugar onde ainda é possível ser livre, mesmo que isso signifique ser chamado de obsceno, vulgar ou irreverente. Uma América onde o sexo foi e continua a ser tabu, o álcool é permitido, mas os sentimentos são proibidos e onde o calão surge talvez como a única forma de libertação genuína.

E por falar em Hunter Thompson e em obscenidades, não sei se estão familiarizados com o filme “Fear and Loathing in Las Vegas” do eterno Terry «Python» Gilliam?

Parece-me que não estarei a exagerar se vos disser que o vi mais de vinte vezes. E porque não? Aquilo é “simplesmente” o melhor de Johnny Depp no cinema. A sua voz off e o seu humor não são só inesquecíveis, são um hino ao cinema dentro do género. Mas há tipos mais espertos e sobretudo menos caretas do que eu. Como o meu vizinho de infância, por exemplo, que para mergulhar vivamente na atmosfera do filme terá usufruído de algumas das minhas vinte vezes under the influence.

Criador do jornalismo gonzo, Thompson lançou-se numa espiral alucinante de substâncias, política e caos. Este “Delírio em Las Vegas” (1971) como é conhecido em português, é talvez, a sua obra mais emblemática — uma viagem selvagem onde o consumo de drogas não era apenas uma fuga, mas uma forma de revelar as entranhas do “sonho americano”. Ele não se importava com as regras do jornalismo tradicional ou da literatura; seu objetivo era expor o absurdo das convenções de sua sociedade. O autor tinha uma espécie de raiva criativa, um ódio visceral pela hipocrisia dos poderosos, e usava a escrita como sua arma de destruição.

Um imperativo cultural sugere agora que nos atentemos à ideia do recurso ao calão. Ao contrário da maior parte do cinema americano, foi quase sempre miserável no cinema português. Miserável no sentido de medíocre e forçado. Ninguém sério poderá discordar do valor catártico de uma boa asneira. Mas tal como no humor, terá de ser certeiro: Na forma, no seu conteúdo e sobretudo no Timing.

E se a obra do escritor e autor Hunter Thompson já remete um pouco para o elogio do ócio, será de todo elementar acrescentar também um slang compliment por causa do que Depp faz em “Delírio em Las Vegas”. O «Fuck» de Depp na cena do elevador com Cameron Diaz e Benicio Del Toro é a essência de um belíssimo – «FUCK!» – em qualquer língua. No cinema, continuo a tentar ouvir um que me soe melhor. Aquilo é terapia para a alma. E não dá para “pular” a cena e procurar no YouTube. Há coisas que não se podem fazer. James Bond diria agora em 2025 que da mesma maneira que não se ouve Justin Bieber sem tampões nos ouvidos, também não dá para ouvir este «Fuck» de Depp, aliás em rigor.. «ohhh.. fuck!» sem ver o filme desde o seu início. Não é de facto a mesma coisa. O olhar de Depp para Del Toro, num misto de embaraço e conformismo, foram os responsáveis por doses delirantes de dopamina, deste, que agora vos escreve.

E sabem o que é que é irónico? O “FUCK” de Depp não é um simples reflexo do seu caos interno acelerado por substâncias alucinogénicas, mas uma forma de comunicação que, no contexto do filme, parece mais clara do que qualquer outro diálogo. Ali, em meio a todas as falas desconexas e bizarras, o “FUCK” se torna o ponto de convergência, o símbolo de toda a busca fútil pela verdade numa viagem de pecados e desilusões. Imagine, por um momento, que a cena não existe. Sem aquele “FUCK!” é como se uma geração inteira se perdesse em seus próprios excessos, ao mesmo tempo que tenta desesperadamente encontrar um pouco de sentido num mundo que se desfaz diante dos seus olhos.

Um outro Fuck incontrolável e de uma inegável autenticidade é o de Edward Norton no famoso monólogo do filme de Spike Lee “A última Hora“. Um dos grandes «Fuck you!» dos últimos 25 anos do cinema mundial. Monty que se encontrava na casa de banho do bar de seu pai, depara-se com algo escrito no canto inferior direito – a expressão Fuck You. A partir daí são 5 ou 6 minutos de pura magia cinematográfica e que vale a pena recordar. A personagem protagonizada por Edward Norton “leva-nos”, através de um monólogo, ao multifacetado e multi-complexo mundo étnico e cultural da sociedade nova-iorquina. A revolta de Monty por tudo o que lhe está acontecer e a gestão do seu sofrimento e revolta terminam (ou começam) com uma complexa conversa consigo mesmo frente ao espelho. Fuck this city, and every one in it. A auto-paródia resultante de uma figura que fala consigo mesma, como se fosse um anjo vs diabo, a culpar toda a cidade, etnias, credos e grupos sociais que se encontram nas ruas de Nova Iorque pela sua própria miséria. Edward recita uma espécie de um rap em crescendo, como que falado – a ambígua e paradoxal visão do “estrangeiro em nossa casa”. A fórmula soberba com que Spike Lee nos vai revelando a suposta “origem do mal” enquadrando a revolta da personagem com aquilo que seria o espelho social e o pensamento colectivo da Nova-Iorque do pós 11 de Setembro, aliada à autoironia do espelho como símbolo metafórico, fazem desta pelicula o mais interessante filme sobre o 11 de setembro.

E Henry Miller? Prometo que não vos vou falar dos “Trópicos”, mas Miller (que é muito especial para mim) como todos os grandes escritores do seu tempo, tornou as suas obras muito pouco datadas e também por isso, mas não só, universais. Lê-se o seu implacável retrato de um país que ele abandonara, para voltar mais tarde, e, juraríamos poder tratar-se da América de Trump – um país de grandes esperanças, promessas traídas e insanáveis contradições. Ninguém escreveu como ele sobre as ruínas do sonho americano, talvez só mesmo justamente: Fante, Baldwin, Bukowski e Hunter Thompson. Alguém dizia sobre Miller e o seu “Pesadelo em Ar Condicionado” de 1945: – “erguem-se industrias hipócritas e cidades aberrantes, mecas de negócios, ganâncias e bugigangas, mortos-vivos enterrados em crédito e preconceitos, gente de cifrões nos olhos divorciada da terra que pisa e explora”. Henry Miller com o seu olhar meio turvo de quem já viu mais do que qualquer ser humano deveria, começa a discursar sobre a farsa da moralidade. “A sociedade americana”, diz ele, “é uma grande masturbação de hipocrisia. Eles falam de pureza e depois passam o dia na frente da televisão para se afundarem na mediocridade.”

Ao mesmo tempo que escrevo estas linhas oiço, aqui, no Spotify, a sua voz rouca e desafiante que ressoa, como se estivesse a convidar o inferno para sentar-se à mesa em “A conversation with Henry Miller”, que é, diga-se de passagem absolutamente imperdível. É um delírio desconcertante quando Miller percorre toda a América e observa a realidade pela janela do seu carro. Algumas passagens de “Pesadelo em Ar Condicionado” são inesquecíveis. “A América não é lugar para um artista: ser artista é um ser leproso moral, um inadaptado económico, uma responsabilidade social. Um porco cavado a a milho goza uma vida melhor do que um escritor (…) Porque em nenhum um outro lugar do mundo é tão completo o divórcio entre o homem e a natureza. (…) Chamar a isto uma sociedade de pessoas livres é blasfemo. (…) Defendemos com as nossas vidas os princípios mesquinhos que nos dividem (…) A educação nunca poderá dar sabedoria, nem as igrejas religião, nem a riqueza felicidade, nem a segurança paz. (…) Os bancos que enriqueceram ensinando-nos piedosamente a poupar, a fim de nos vigarizarem com o nosso próprio dinheiro, pedem-nos hoje que não lhes levemos as nossas poupanças, ameaçando eliminar até mesmo a ridícula taxa de juro que presentemente pagam se não acatarmos os seus conselhos”.

Continuo a imaginar estes génios literários à mesa de um bar. John Fante, com sua melancolia meio italiana e meio americana, olha para Miller com um sorriso cínico. “Hipocrisia é o pão que comemos. O resto é só calar a boca e esperar o fim.” Ele mexe no copo, reflete sobre as palavras e continua: “Mas, como bom escritor, tenho de perguntar: o porquê de escrever se não posso falar a verdade? Em cada palavrão, há uma fração de liberdade.” Ele solta um pequeno suspiro. “Mesmo que me condenem, a minha América é esta. Um lugar onde o sonho americano está mais morto do que qualquer um que tenta vivê-lo.”

Charles Bukowski, sempre com aquele semblante sujo de quem acabou de sair da sarjeta, intercede com um sorriso torto: – “Vocês são uns românticos”, diz ele, “A verdade é que a América está cheia de merda. E a única maneira de falar sobre isso é chamá-lo pelo nome. A vida não é bonita. Ela é nojenta, suja e cheia de vícios. Então, toda e qualquer asneira que eu escrever é porque é necessária.” Ele dá um gole no whisky e é imediatamente interrompido por Hunter Thompson, o eterno idealista que nunca pode ser encontrado. Dá uma daquelas suas gargalhadas invulgares, trava um pouco da sua cigarrilha e elucida os colegas de mesa: -“Calma, calma. Nós estamos todos no mesmo barco. A verdade? A verdade é que a América é um caldeirão de ilusões e o calão é o único remédio para essa febre. O sistema está tão quebrado que só podemos rir do absurdo. Se a nossa língua está imunda, é porque a realidade é imunda.” Ele faz uma pausa, como se estivesse refletindo, e solta: “E se alguém reclamar, que vá para o inferno!”.

Charles Bukowski foi talvez o mais cru e direto de todos, escrevia sobre a vida como ela era: suja, entediante e, por vezes, desolada. Com uma prosa inovadora mergulhou no quotidiano dos bêbados, dos derrotados e solitários. Seus romances, como “Mulheres” (1978) e “Hollywood” (1989), são um retrato brutal de um homem que não pede desculpas pela sua própria decadência. Bukowski não escrevia para agradar, mas para exorcizar seus demónios. Seus personagens, muitas vezes ele próprio, eram vítimas de suas paixões e desejos incontroláveis. Mas, ao mesmo tempo, sua escrita possuía uma delicadeza crua, uma honestidade que poucos ousam tocar. No fundo, o que Bukowski fazia não era apenas contar histórias, escavava o que há de mais humano e feio em nós.

Tiago Pereira da Silva

Na imagem de capa está “Fear and Loathing in Las Vegas”.