O Cinema com C maiúsculo de “Ainda Estou Aqui”
Escrito por Tiago Pereira da Silva em 24/01/2025
Foi e é revigorante perceber que numa era onde cada vez mais pessoas substituíram o grande ecrã pelo telemóvel – convencidos de que podem usufruir de uma experiência parecida com a do cinema – o poder assistir ao filme “Ainda Estou Aqui”, numa belíssima sala de cinema a rebentar pelas costuras. Filas e filas, salas e sessões esgotadíssimas. O pouco que sabia do filme é aquilo que se pode ler em toda a parte: Dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro como Eunice Paiva em diferentes fases da vida, além de Selton Mello no papel de Rubens Paiva. Baseado na autobiografia homónima de 2015 escrita por Marcelo Rubens Paiva, a trama retrata a história autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva com enfoque na vida de sua mãe, Eunice Paiva, uma advogada que acabou se tornando ativista política na sequência da prisão e consequente desaparecimento de seu marido pela ditadura militar brasileira.
O filme de Walter Salles merece tudo o que de bom lhe acontecer pelo caminho. E pouco importa se Fernanda Torres irá ou não juntar ao globo de ouro (já ganho), o sempre apetecível Oscar. O que me parece é que a contenção da sua Eunice Paiva aliada ao seu desespero chega a ser sublime. Ela conseguiu levar a dor para um outro lugar, que não me lembro de ter visto por um actor de cinema nos últimos anos. Mesmo que a dor consiga ser, como sabemos, extremamente empática a filmografia de Walter Salles nunca cede à tentação do melodrama fácil com vista a manipular as emoções do espetador. Depois há Selton Mello, que dispensaria qualquer elogio, vão lá ouvir por exemplo o que disse Sean Penn sobre o filme, e, Selton em particular.
A primeira opção que me parece muito assertada do ponto de vista cinematográfica é que desde o minuto inicial, Walter Salles, ao nos colocar no contexto do ambiente da época (1970), e relembro aqui que Salles filmou em película (35mm), na cidade do Rio de Janeiro, fá-lo de forma intimista dentro da casa de Rubens e Eunice Paiva. E que casa minha gente, o espectador vai ganhando como que uma proximidade com aquela família. Como se a câmara fosse um de nós como testemunha. Para poder ver bem de perto toda aquela liberdade individual e cultural, entre todas as gerações que se cruzaram naquela casa, família, amigos, jornalistas, escritores, ao som e ritmo da música e referências da época. É também por isso, justo dizer que a casa dos Paiva é quase como uma personagem do filme, casa essa que tem para o filme de Walter, o mesmo que o Ramalhete para «Os Maias» de Eça.
Aliás outro aspecto que favorece a intenção cinematográfica, “Ainda Estou Aqui” é todo ele filmado cronologicamente, o que faz com que os actores e a equipa de filmagem que estreitaram laços, ao desaparecerem do filme e tal como na história que é contada, tornam o desaparecimento de Rubens e a despedida da casa ainda mais real e próximo para o espectador.
É de facto dos filmes mais corajosos e humanistas que vi no cinema nos últimos anos, não só pelo peso da história que carrega, essa quase impossível tarefa de trazer para a Tela o trágico desaparecimento de Rubens Paiva às mãos do estado durante o período da ditadura militar brasileira – Essa missiva persecutória arbitrária tão característica das ditaduras sul Americanas dos anos 1960 e 1970 que quebraram e desarticularam milhares e milhares de famílias. Como aqui nesta história, em que se deu o caso do estado brasileiro invadir literalmente o coração desta família.
Talvez não seja por acaso que o filme esteja a ter a repercussão gigantesca no seu Brasil. Na ressaca do Bolsonarismo o filme de Walter tem essa vocação de levantar muito mais questões, do que chegar a soluções rápidas. Mas tal como aconteceu com outro belíssimo filme sul-americano “Argentina” (1985), acabamos o filme presos ao olhar de Fernanda Montenegro e o resvalo da memória para que nunca mais se repita aquele passado.
Tiago Pereira da Silva