Bernardo Bravo “prolonga” encontro entre a música e a literatura
Escrito por TunetRádio em 26/06/2024
O artista brasileiro Bernardo Bravo inspirou-se na obra de Fernando Pessoa para compor “Disco do Desassossego Deluxe“.
Aos 16 anos, Bernardo Bravo leu pela primeira vez o “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, e deu-se conta de que partilhava o mesmo nome com o heterónimo da obra: Bernardo Soares. O artista, nascido Bernardo Soares Bravo, então maturou por anos a ligação com os textos do autor português e mais tarde, em 2019, nasceram os primeiros oito temas do “Disco do Desassossego”, que ganha agora sua continuação com a edição de “Disco do Desassossego Deluxe”, com quatro músicas inéditas, comentários em áudio a respeito da criação das canções e trechos do livro declamados.
“O processo de composição foi inspirado no texto e no próprio processo de criação do Livro do Desassossego, feito ao longo de 20 anos, de forma esparsa. Compus as músicas a partir de uma leitura oracular do livro, em livre inspiração e com a vontade de atualizar os temas que Fernando Pessoa trouxe no início do século 20 para o início do Século 21”, conta o artista brasileiro. O disco conta com produção musical de Du Gomide e traz participações da banda Tuyo, Patrice Quinn (Kamasi Washington), Ísis Odara, Cacau de Sá e Fe Koppe (banda Mulamba), Janine Mathias, Juana Profunda, Larissa Tomas, Uyara Torrente, Francisco Mallmann, Pretha Almeida e Gio Soifer.
Instrumentos como rabeca, alfaia, flauta transversal, harpa, banjo e guitarra chinesa, entre outros, compõem a sonoridade “diversa” do álbum, que tem inspiração no trabalho de artistas como João Gilberto, Bonobo, Portico Quartet, Radiohead, Renata Rosa, Peter Gabriel, Deborah Blando, Mayra Andrade, Bonga, Mestre Ambrósio, Rachel Reis e Sufjan Stevens. “As temáticas das canções, por sua vez, também passam por diferentes questões – desde as mais existenciais, como as escolhas que fazemos na vida, às mais efémeras, como a paixão”, lê-se na nota que acompanha a divulgação do disco.
A capa traz o ambiente aquático já trabalhado no “Disco do Desassossego”, de 2019. “Bernardo elegeu a água como elemento representante do desassossego e quando ele disse-me que a água também estava no áudio das músicas, com barulhos de chuva e do mar, optei por trabalhar apenas com esta paleta de cores aquática: azul piscina, turquesa, verde água. Todas as fotos e artes estão ou sugerem estar dentro d’água”, conta Nina Barbosa, que criou as imagens que acompanham o álbum.
“Desassossego n.1 – Coração Alado” traz um enunciado que aborda os perigos de olhar muito para o céu, e dá início ao álbum com a poeta Ísis Odara a declamar Fernando Pessoa. Guitarra em escala pentatônica, flauta, rabeca e harpa perfazem o arranjo. “A música fala sobre o medo que o coração pode ter ao iniciar uma jornada para dentro do desassossego. É o início do caminho do elemento água ainda no estado de vapor”, conta Bernardo.
“Desassossego n.2 – Demolido” inicia-se com barulho de serra ao fundo, enquanto a poeta e compositora Cacau de Sá declama um texto sobre a “era metálica dos bárbaros”. Compondo musicalmente o tema estão barulhos de garganta manipulados em estúdio, que formam o solo. Ao fim da canção, um som de trovão anuncia a jornada da água em precipitação. “Este é um desassossego que fala sobre a necessidade de desconstrução da nossa forma de pensar para caminhar melhor.”
“Desassossego n.3 – Onira” tem declamação de Janine Mathias e aborda o poder da água como elemento que desfaz a forma bruta das coisas e molda a vida a seu bel prazer. O arranjo contém guitarra chinesa, rabeca, e sobreposição de vozes de Lio e Lay Soares, do grupo Tuyo, com Patrice Quinn, vocalista que integra o projeto de Kamasi Washington. “A Patrice veio visitar-nos no dia em que estávamos gravando a faixa, que foi composta para vozes femininas. Ela sentiu a música e pediu para que eu traduzisse a letra, e quis gravar a canção”, conta Bernardo.
“Desassossego n.4 – Amor Livre” traz a drag queen Juana Profunda a falar a respeito da ideia do amor como algo que ama apenas a ideia do ser amado. “É o desassossego que abre o aspecto relacional do álbum, e invoca de forma paradoxal a ideia de amor livre.”
“Desassossego n.5 – Madrugada“, com participação de Larissa Tomas, é um bolero conduzido por rabecas, e trata sobre a possibilidade de expressar em público uma grande paixão. “A letra aborda a delícia de beber a madrugada em grandes goles.”
“Desassossego n.6 – Coração do Mar” retrata o ciclo da água elencado desde o Desassossego n. 1 e então deságua no mar. Uyara Torrente declama texto de Fernando Pessoa que fala da relação sinestésica de um céu estrelado com o barulho de todas as ondas. “É o mar que nos conecta nesta canção: a inspiração de uma melodia do compositor angolano Bonga, sob o ritmo da morna, do Cabo Verde; o texto do português Fernando Pessoa; e a letra feita por mim, o Bernardo Soares brasileiro.”
“Desassossego n.7 – Farol” tem participação de Francisco Mallmann e é uma homenagem ao Farol da Ilha do Mel, no Paraná (BR), que representa a luz que pode guiar-nos quando o desassossego joga com o acaso. O arranjo é de rabeca, contentor metálico e violão de nylon.
“Desassossego n.8 – Pós-contemporaneidade” abre com fala de Pretha Almeida sobre a temática da canção: o acto de falar o que está na alma de todos, mas que ninguém reconhece. “É a metáfora da água sobre o amor, ou um encontro entre Fernando Pessoa e o amor líquido de Zygmunt Bauman. É uma canção com temática relacional, que reconhece no texto final a capacidade que podemos ter de viver o sonho realizado no corpo.”
“Desassossego n. 9 – Manda áudio” foi criado durante a pandemia e traz a metáfora da canção ao pé-do-ouvido como o único jeito de, durante aquele período, poder tocar em alguém. “É uma valsa/alento para um período de tristeza.”
“Desassossego n. 10 – Sigilo“, o single do disco, é o momento em que o poeta encontra com o rebolado. “É Fernando Pessoa na Bahia. É uma relação em brigas narrada com tom jocoso. É saber que vai haver problema e mesmo assim viver o que tem de ser vivido.”
“Desassossego n. 11 – Quase 40” é uma canção de redenção que afirma que o cuidado é o melhor jeito de se viver com genuinidade e autenticidade. “Esta é a coleta preciosa de frases dos meus amigos que tem quase quarenta anos postas a fio e em sequência.”
“Desassossego n. 12 – Nenna” homenageia os quatro afilhados de Bernardo Bravo e remete a mesma escala do Desassossego n.1: é a água final, a retornar ao seu ciclo.
Fotografia de Bernardo Bravo por Nina Bufferli Barbosa.