Crónicas de Abril – I Parte: As «caça-fascistas»
Escrito por Tiago Pereira da Silva em 01/04/2024
Começo a sentir uma certa compaixão por alguns sonhos que tenho durante a noite. Mais do que os sonhos em si, temo pela integridade física das suas personagens. Quase nunca me lembro do que sonho, mas nas raras vezes em que isso acontece é quase sempre digno de um infinito peculiar muito Tarantiniano. Talvez tivesse sido pertinente solidarizar-me, primeiro, com todos aqueles que também não se consideram “pessoas de bem”. Ao menos, assim, antecipo o ambiente certo, para história que vos proponho contar.
Um dos problemas da paternidade, associado à tão popular privação do sono, é que dá aos Pais, quando finalmente conseguem dormir, vá… aterrar, por breves instantes (que parecem segundos), uma espécie de cemitério de todas as angústias recentes. No meu caso, produzo sonhos com um nível de demência assustadora. Iria até jurar que, por vezes, oiço o meu consciente dizer para o inconsciente: “Epá, vai à merda, quero o divórcio”, ou então um “não te quero ver nem pintado em sonhos”. Foi no meio deste fanico interno noturno (sonho) que se cruzaram: um cocktail de angústias recentes, música, escrita, e, como não podia deixar de ser, cinema, muito cinema.
Vamos lá então a esta empreitada de explicar o sonho. Como se calcula, eu não faço ideia de muita coisa, como também não faço ideia da idade do leitor. Não sei se a suficiente, por exemplo, para ter assistido às duas guerras do Iraque, a última das quais, legitimada pelo estado português nessa fulgurantemente absurda cimeira da Base das Lajes. Mas saltemos isso, não me quero lembrar muito desse Bush da política portuguesa chamado – cherne. De qualquer forma, mesmo que só tenha idade para só ter visto a última guerra – já deve ter ouvido falar de um filme chamado Ghostbusters, ou, em português, caça fantasmas – mais que não seja através do seu remake. Pois bem, essa quase comédia sobrenatural, um original de 1984, protagonizada por Bill Murray, conta-nos a história de três amigos que expandem o negócio de captura de fantasmas, através de um aparelho criado por um deles para esse efeito. De maneira que sempre que alguém via um fantasma, em casa, na rua, num prédio ..«who you gonna call? Ghostbusters». No meu sonho acontecia algo parecido. Só que no lugar de se caçarem fantasmas, caçavam-se fascistas. E no lugar de um aparelhómetro usado para esse efeito, surgia uma banda de música a tocar puro e duro rock n´roll. Mas atenção, não era uma banda qualquer, era uma banda composta só por mulheres. É isso mesmo que está a pensar, numa espécie de tributo consciente às «The 5,6,7,8’s» incluídas por Tarantino no seu magnifico Kill Bill. Veja bem, as duas bandas que o meu cérebro cansado criou, ou, melhor dizendo, os dois sets de duas bandas surgiam sempre sem um único homem.
A verdade é que este que escreve, como o leitor bem tem reparado, é uma espécie de trolha literário. Já o meu inconsciente parece de um detalhe Queirosiano. Nos bombos das duas bateristas, da marca Ludwig, respetivamente a Cindy Blackman e a Sarah Jones, podíamos ler o nome da banda «Fascistbusters»; no baixo – Gail Ann Dorsey e Tal Wilkenfeld e seus autocolantes com a provocação: «together we have had 37 abortions». No piano, bem, o piano só poderia estar entregue à pianista japonesa Hiromi Uehara. O sonho era de uma bizarria atroz. Em todos os parlamentos do mundo onde fossem proferidos e levantados os velhos fantasmas do fascismo, as «Caça-fascistas» irrompiam subliminarmente entre as galerias dos edifícios, num estardalhaço de poesia música. Lideradas pela rainha Patti Smith na voz, contavam ainda com um background vocals de luxo: Fiona Apple, Ani Difranco e Cat Power. A juntar-se a estas gigantes do rock independente, estava também a guitarrista Joanne Shaw Taylor, em que bem do alto da sua Talkbox ouvíamos as frases: «What can we do now? poetry and music, these scoundrels can’t stand art». Ao mesmo tempo surgia uma quinta cantora, Feist, com a frase «the room´s full but hearts are empty». Qual 13 de maio, qual quê, cada aparição das «Caça-fascistas» na casa da democracia era um acontecimento. O sonho foi de um realismo assustador, desde o dedilhar das guitarras, à voz de Smith, num misto de suor e aquele riso misterioso de quem da vida só conheceu a noite e suas criaturas. Mas adiante, porque o concerto estava no seu auge e a democracia não se salva sozinha. Valha-me deus, em plena cerimónia dos 50 anos os deputados do Chega batiam incessantemente com as palmas das mãos na sua bancada com o intuito de ofuscar o som. Cada intervenção sua lembra o que escreveu Rui Zink, todo o bom fascista não se arma em esquisito, ele alimenta-se de tudo, muito embora a sua dieta favorita sejam mentiras e distorções. Tal como não desdenha um facto, se for útil para a sua narrativa de vitimização.
Pena que por vezes, o choro do bebé, não nos deixe atingir o clímax do sonho. Fica aquele sabor a coito interrompido. Peço desculpa pela comparação, mas entusiasmei-me com a palavra bebé. Onde é que íamos mesmo? Já sei. Ainda deu tempo para que assistisse às «Fascistbusters» transformarem aquele discurso de Ventura, num acontecimento. Não sei se também o leitor fica com comichão ao ver toda aquela bancada de pé, a bater palmas, o tempo todo, de cada vez que o seu Napoleão regurgita certas banalidades. E quem não conhecesse o livro, não tinha maneira de saber, mas já estou a imaginar esses belíssimos animais brancos a reproduzir para o seu líder “Quatro pernas bom, duas pernas mau”. Calma, malta! Referia-me às ovelhas de Orwell. Depois, depois foi literalmente de acordo com a expressão popular «e depois acordei!».
Já agora, lembram-se de que quiseram retirar o R à palavra revolução durante as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril? Estávamos em pleno governo de Passos Coelho e Paulo Portas e essa era a nova ordem imposta pelo estado Passista, a palavra: Evolução. Que saudades, “né”? Passos Coelho é, convém não esquecer, o padrinho político de André Ventura. O curioso é que a História revelou isso mesmo, a liderança política de Passos nunca achou inaceitável que o seu candidato a à Câmara Municipal de Loures usasse o mais reles argumento racista anti-cigano para trautear a sua candidatura. Pedro Passos Coelho foi o primeiro-ministro da história da nossa democracia com os números do desemprego mais vergonhosos, em que 534 desempregados e 90 empresas, colapsavam por dia. Piegas, diria o senhor da “social-democracia”. Foram tempos sombrios. Aliás aquele governo da APAF conseguiu a proeza de massacrar duas gerações numa legislatura, à mais jovem mandou emigrar e, para os que ficassem, a precariedade laboral (o PSD é o pai biológico dos recibos verdes) seria o caminho. À mais velha foram cortadas as pensões de uma vida inteira de trabalho. O Ministério da Cultura foi extinto, ou que na agenda política para a educação preconizada por Nuno Crato, a escola era vista novamente como a escolinha dos bons velhos tempos, expressão ideológica aliás do CDS-PP, dos tais conhecimentos fundamentais: saber ler, escrever e contar. Qual Salazar qual quê. Nem quero pensar como será agora nos 50 anos, com estes 50 deputados que aparecem entre porteiros de discotecas e delegados de informação médica de uma medicina qualquer alternativa.
Creio que terá sido Pascal o autor da frase: – “toda a infelicidade nasce de sairmos do quarto”. No entanto, talvez seja uma heresia se disser que Pascal se equivocou. Ou pelo menos, errou por defeito ao não estabelecer o peso que a decisão do outro poderá ter em nossas vidas e vice-versa. A frase mais feliz teria sido: «toda a infelicidade nasce dos que decidiram sair do quarto, a 10 de março, para ir votar no Chega». Dir-me-á o leitor agora: «epá, olha que o físico francês não escreveu, nem poderia ter escrito essa frase uma vez que viveu no séc. XVII». Pois… é capaz… por vezes precipito-me. Daqui a nada ainda corro o risco de escrever aqui, antes a inquisição do que o Chega. Por falar em Chega, chega de parvoíces e por estarmos na páscoa vamos ao que interessa. Parece que há pouco tempo morreu a Acácia, a coelha de estimação de André Ventura. Reza a história que morreu infelicíssima na sua gaiola. Alguns dirão agora: «o que é que tem Tiago? era apenas um animal». Lembro-me de ler em algum lado que Oscar Wilde morreu num quarto de hotel. Ao que julgo saber, incomodadíssimo com a decoração do quarto. No caso de Acácia o incómodo foi outro, parece que o dono tinha arranjado um companheiro para se coligarem. Perdão, para procriarem. Só que o pobre coelho macho, era afinal um não-binário extremamente sensível e não aguentou, por exemplo, quando a Acácia lhe disse que não era prostitua, nem idiota útil para a procriação. O coelho, de seu nome Luís, não foi de modas e passou o tempo de uma legislatura de costas voltadas para a Acácia, na pequena gaiola, tendo sido, na opinião da Veterinária negacionista que Ventura arranjara, o fator decisivo para a bichinha morrer de desgosto.
A triunfal subida do Chega nas últimas legislativas deixa em Portugal uma série de perguntas sem resposta, eu pelo menos, não me vou atrever. Já entreter-me com o que aí vem, para já, é como que terapêutico. “Nada que não estivéssemos à espera”, já dizia o historiador Rui Tavares que “não foi por falta de aviso”. Já se sentia por aí, esse cheiro do fantasma do autoritarismo. O fascismo parece estar mesmo na moda.
O leitor está seguramente familiarizado com a história do filme Parque Jurássico, que resumidamente, diria eu, conta a história de uns quantos cientistas malucos que, ao brincarem com o (ADN) de dinossauro conservado em âmbar, recuperam o que a seleção natural quis extinguir, acabando perseguidos pelos bichinhos de dois andares. Talvez não seja estranho, por isso, que alguns jovens eleitores portugueses, alguns dos mesmos que têm trocado os atos eleitorais por dias de praia, ou aqueles que gozam de um orgulhoso QI – alimentado por fast food televisivo em prime time (em programas tão prestigiantes como o Big Brother) – tenham decidido agora: olha que engraçado, o fascismo conservado em “âmbar” (…) “bora lá ver o que é que isto dá”. O problema é que o que restava, e resta, do fascismo é visto, como em muitos países da Europa, como património nacional. Na verdade, estávamos mais do que avisados para o que aí vinha, mas decidimos normalizar quem se serve da democracia para chegar ao poder. Já dizia o historiador português Rui Tavares: e uma democracia sem ideias abre-lhes o caminho. Uma democracia que não acredite no futuro pode bem acabar por não o ter.
Imagem de capa por Goran Horvat/Pixabay.