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«A Garota Não» a urgência das grandes descobertas

Escrito por em 09/09/2023

Confesso, com alguma vergonha, que só agora (há poucas semanas) é que me “cruzei” com o disco «2 de Abril». E vejam bem, eu até procuro praticar para mim uma certa iconoclastia, mas com esta «garota» fica um pouco difícil. Lembrei-me da frase do jornalista de Jon Landau, evidentemente, soando aqui a cliché, mas com a pretensão ingénua de declarar o roubo: “Eu vi o futuro da música portuguesa e esse futuro chama-se: «A Garota Não» ou mais concretamente Cátia Oliveira. Há qualquer coisa de início nela, uma leve e carinhosa rebeldia musical, onde escala a essência do medo através de uma canção, como há muito não via. Parece um édito imperturbável quando nos canta os que vivem famintos e ao relento.

Dizer algo como: – “Foi uma surpresa tão grande e tão profunda que ainda agora estou sob o seu impacto” não é de todo exagerado quando pensamos em «A Garota Não». Ela ensina-nos, por exemplo, que perante uma tragédia humana, o pecado maior é a indiferença. E num País em que surgem cantoras de fado com a mesma frequência que ouvimos a palavra crise é com uma certa nostalgia e desespero, num misto de ternura e raiva, que surge agora uma cantora-autora no verdadeiro sentido do termo. E veja-se bem, totalmente contra corrente. O disco «2 de Abril» não envelheceu, nem um dia, sobretudo pela forma como a autora mergulha nos temas. Quando o comecei a ouvir, veio-me à cabeça a frase: Há discos que ficam perdidos nas estantes de nossa casa, mas as vidas que esses mesmos discos transformam – são um lugar difícil de encontrar e sobretudo impossível de esquecer. E este disco parece feito para cada um dos seus ouvintes. É um disco que não pede pressa, mas como diria Saramago agora: não percamos tempo e ouçamos.

A proposta até parece simples de tão necessária. Uma autora que parece trazer à tona a sua história pessoal, narrada de uma forma simples, sem reticências ou floreados. E nem é preciso esperar pelo final da primeira canção (sem final) para ouvir a sugestão de que “podem decretar o fim da arte”, porque “há sempre alguém que sonha em qualquer parte.” E como vamos percebendo ao longo do disco de «A Garota Não», diferentemente de tantas cantoras “bonitinhas” e “perfeitinhas” que por aí andam, aqui, canta-se a angústia diária dos que a quem tudo falta. Quem sabe até: a paz, o pão, habitação, saúde e educação, como nos cantou Sérgio Godinho, que me atrevo a dizer – um dos seus afectos musicais.

A sua voz é singular, mas até nisso é de uma urgência colectiva: nunca resvala para a solidão do eu. Traz em si a voz da rua e mediante a pertinência de uma injustiça social ela canta-nos, uma vez mais, no plural: “a gente faz uma canção sobre isso”. As guitarras e produção de Sérgio Mendes são o veículo seguro e perfeito para a sua inquietação musical.

E este parágrafo poderia muito bem começar com um “mais tarde ou mais cedo”. Mas temo que só possa começar assim: mais tarde, do que cedo, haverá justiça para os poetas da música. E nós por cá, em 2023, com este nível de profundidade e verdade nas canções, talvez mesmo só com a Capicua e agora com fabulosa maturidade lírica de Cátia Mazari Oliveira. E num mundo ideal nem precisaria de lembrar o quão revigorante é perceber, que são duas mulheres. Seduz-me esta sua coragem de viver alheia a um certo perfil de canção para tocar na rádio, e, a uma certa datação da indústria fonográfica.

«Dilúvio» e «Química» são mesmo de uma beleza surreal. E mesmo que ela nos ensine que: – “falar por canção, custa muito menos” é preciso estacionar em «urgentemente», demorarmo-nos lá, na forma maravilhosamente “relaxada” com que nos conta que “é urgente o amor”, com uma sabedoria, perdoem-me o neologismo, quase Lennoniana. Mas é também em Jorge Amado e Eduardo Galeano (que imagino eu, povoaram a estantes lá de casa no seu Bairro 2 de Abril) que penso quando a vejo a querer que “multipliquemos os beijos e as searas”, ou de como “é urgente inventar a alegria”.

Como seria de prever «A garota não» atira-se «ao amor é bom» para um dos grandes temas do disco. Protagoniza um contraste entre o amor e os seus desavindos, entre a luz de cantar a euforia: Do amor bom! “Quando o amor é bom, anda de bicicleta de mãos na cabeça e pés no guidon, Seja samba ou fado, muito bem cantado ou fora de tom”, ou a quase “tragédia” de quando ele vem fechado. Aliás, quanto a mim, um dos momentos mais ternos do disco quando nos canta os versos: “Porque nem só de alegria, ele canta a sua glória e hoje é o primeiro dia do resto da sua história”.

Na sua música, sendo totalmente original, não deixa de se sentir a nostalgia de que falava inicialmente, a nostalgia de um Zeca, de um José Mário, ou de um Sérgio que nos contou sobre a «Carroça dos poetas». Tudo neste disco respira a um certo realismo urbano, numa herança directa de uma espécie de um neorrealismo moderno. Ou não fosse ela encerrar o disco numa prosopopeia cristalina, homenageando um dos seus “pais” musicais, numa intemporal e por vezes distante: liberdade. Como quem interpela, ou lhe diz: não te esqueças de nós! – “liberdade, querida liberdade. O nosso chão tem sonhos e vontade”. Notável. Este disco é absolutamente notável. Tudo bem, tivemos e temos António Zambujo, mas não creio enganar-me se disser que «A Garota Não» é do mais original que aconteceu na música portuguesa desde Zeca Afonso. E como gostaria o Zeca de a ouvir também.

Fotografia de Cátia Mazari Oliveira no FMM Sines 2023 por Pedro E. Semedo.