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`Yume, yume wa’ «Sonhos, sonhos são»

Escrito por em 02/08/2023

「夢、夢は」

`Yume, yume wa’ «Sonhos, sonhos são»

Sabem aquela sensação de «sonho ou realidade?» Na estreia literária do aclamado escritor japonês Haruki Murakami, ele escrevia o seguinte: «há muito tempo que não sonhava. Tanto assim é que demorei um bom bocado a compreender que se tratava de um sonho». Como eu o percebo!

Saí dali e dirigi-me ao metro de Shinjuku para ir até à zona de Ginza, mais concretamente o restaurante Sukiyabashi Jiro. Quand0 ouvirem alguém a utilizar a palavra – multidão – desconfiem sempre. A não ser que já tenham ido à estação de metro mais movimentada do mundo, em que cerca de 3,5 milhões de almas se cruzam diariamente. Mas lá ia eu ao encontro da segunda geração de Sushi da família do lendário Jiro Ono que, com ou sem perda da estrela Michelin, deve no seu minúsculo restaurante de oito lugares providenciar o melhor Sushi do planeta. Cada viagem ao japão deve ser alimentada, pelo menos para mim, a orçamentos disciplinados, só me permitindo a duas ou três extravagâncias. A esta, quero permitir-me a tudo de uma vez. É inegociável. Como se todo o peixe fresco do mundo coubesse na ideia de um prato e viesse em minha direcção. Bem vistas as coisas, «isto», não é o poder da gastronomia oriental, é, sobretudo, uma experiência religiosa. Aguçado o meu apetite, fiquei durante 35 minutos no interior do restaurante. Até nisto se vê a eficiência japonesa. É preciso marcação para este restaurante com 16 meses de antecedência. Há quem fique dois anos à espera. E gostaria que alguém me explicasse também, como raio consegui eu combinar um encontro com esse eterno jovem – Hayao Miyazaki?

Sim, mas aconteceu!

Comecei esta crónica no território temerário do sonho e fantasia. O músico brasileiro Chico Buarque tem uma canção cujas palavras simples num dos versos, assentam na perfeição para o que procuro relatar aqui: “sei que é sonho, incomodado estou num corpo estranho”. E não creio meter-me numa embrulhada estilística se roubar para este texto o título dessa sua canção. Aliás, será sempre uma forma de o homenagear.

Acordei de um sonho em que, resumidamente, tinha feito a minha 4.ª viagem a Tóquio. Sempre com a estranheza de por vezes não saber ao certo se emergia a memória ou a fantasia. E nem é preciso ter lido «Tóquio vive longe da Terra» do português Ricardo Adolfo, basta ter-se aterrado numa das mais de 6000 ilhas japonesas e passar uns dias, para percebermos que nós os terrestres, somos vistos pelos ilhéus como aliens.

Isso mesmo, leu bem! Mas não há nada como cair na repetição – A L I E N   Desde o tempo em que Luís Fróis (1585) escrevia japões e japoas, no seu interessantíssimo «Tratado das contradições e diferenças de costumes entre a Europa e Japão» que muita coisa terá mudado entre a Europa e o Japão. No documento do missionário português do século XVI podemos ler: – “os costumes dos portugueses e o seu modo de proceder é totalmente opósito ao dos japões”. 430 anos separam o tratado de Fróis, do livro de Adolfo e nada parece ter mudado em relação a essa frase. Na realidade Luís Fróis tem uma palavra chave – opósito – de oposto. Adolfo classificaria que de tudo o que nós somos e fazemos está nos antípodas do japonês.

Voltando a esta minha quarta viagem ao japão, importa referir que desta vez fiz quase tudo o que nunca consegui fazer. Depois de três viagens à gigantesca metrópole japonesa, vou ficando cada vez mais seguro, que para além do encantamento instantâneo do primeiro encontro, a segunda viagem foi melhor do que a primeira e a segunda perdeu também ela para a terceira. Por isso mesmo, não me custa nada acreditar que a melhor viagem a Tóquio é para mim aquela que ainda não aconteceu. É provável que na vida aconteça muito como diz o ditado: “nunca voltes ao lugar onde foste feliz”. Sempre interpretei este ditado à letra, como se certos lugares permanecessem para sempre na nossa memória feliz sem termos de lá voltar. Quem sabe também, não possamos ser felizes ao voltarmos a esses lugares, mas como diria o “mochileiro” português Gonçalo Cadilhe: “volta sempre a um lugar onde foste feliz, mas a horas diferentes”.

Não deixa de ser curioso, olhar para um globo ou mapa mundo em casa e surpreender-se pela a abstração: como é que pode uma ilha, num concentrado pequeno de terra, albergar a cidade mais populosa do mundo? Com praticamente 38 milhões de habitantes, em bom rigor: 37.435.191, segundo os dados de 2021.

Andava eu perdido numa rua de Tóquio, em que bem ao meu lado, estavam Bill Murray e Scarlett Johansson. Mas preciso orientar o leitor, para os que como eu, se renderam ao universo cinematográfico de «Lost in Translation» de Sofia Coppola é de todo impossível não se lembrarem da cena final com os dois protagonistas. A personagem de Bill Murray (Bob) a caminho do aeroporto de Haneda, ao estar parado num semáforo apercebe-se da presença da personagem de Scarlett (Charlotte) na rua. Em passo acelerado sai do carro e vai ao encontro dela. O que vemos a seguir no filme é o tal abraço e beijo imperiosamente captados pela lente de Sofia Coppola. O que Bob segreda ao ouvido de Charlotte, no final dessa cena, é que nunca ficaremos a saber. Quer dizer, vocês não.

Inteiramente realizado e dirigido em Tóquio – «Lost in Translation» continua a ser para mim um dos grandes filmes sobre a condição da felicidade humana. Sobre a solidão. «Lost» é a metáfora perfeita para aquilo que iriamos encontrar neste virar do milénio. Cidades cheias, em que mesmo esbarrando uns nos outros o tempo todo – as pessoas já não se veem. Estão cada vez mais sós. Talvez seja o mais encantador do filme, só dois desavindos como «Bob» e «Charlotte» poderiam reparar um no outro.  Bill Murray é um hino ao cinema. É daqueles actores que pode estar sem diálogos 30 minutos e ao mesmo tempo alimentar o filme todo. “Milhares” de actores que por aí andam não suportariam o que é pedido a Bill Murray em «Lost in Translation». Também memorável é a cena da sala de espera do hospital, em que duas japonesas num plano ao fundo se desmancham a rir, com a “conversa” e “tradução” que Bob tentar estabelecer com uma velhota japonesa.  Este texto não é sobre Murray, mas é sempre bom lembrar-me que nenhum outro actor que conheço consegue ser dirigido assim: tão enxuto de maneirismos desnecessários. O improviso preparado é sinónimo de Bill Murray no cinema.  O actor é corpo e intelecto o que não se traduz necessariamente em falas. Bill sabe disso como ninguém.  E há uma razão, fundamentalmente, para ter ido buscar «Lost in Translation» – é que a Tóquio que conheço é exatamente assim.

Bom, mas voltando ao sonho e a Miyazaki. Lá estávamos os dois no seu lendário estúdio Ghibi na zona de Koganei. Os seus 82 anos ainda lhe permitem certas acrobacias com o saké. Um japonês é sempre um japonês. E da mesma maneira que na hora da morte o mais belos dos samurais não abandona o seu sabre, os Japas bebem até cair comoventemente no chão agarrados à sua nova condição. Escusado será dizer que bebi bem acima do meu limite japonês.

Tentei de tudo para poder acompanhar o meu velhote favorito no mundo, que aquela noite foi para mim a constatação prática do que havia lido há uns tempos no «Tóquio vive longe da Terra» do escritor português Ricardo Adolfo: – «Percebi que ali se separavam os nossos caminhos. Tinha crescido sob a lei de que um homem, antes de ir ao tapete, abandona o ringue e vai para casa a cambalear. Vai sozinho, mas não deixa a dignidade no chão». Enfim, sozinho, não sabia bem o que fazer com os restos sóbrios de Miyazaki, de maneira que o deixei deitado no chão do seu próprio universo. Uma luz semi-cerrada que vinha de um poster enorme da «Viagem de Chihiro», faziam do seu criador ali deitado uma das imagens mais ternas daquela viagem.

Tiago Pereira da Silva