Omaggio ao mundo visto pelos “loucos”
Written by TunetRádio on 10/07/2023
Gosto muito de escrever sobre músicos e escritores. Mas também sobre actores e cineastas. O resultado, como de costume, é quase sempre sinistro e duvidoso. Mas tenho uma tese herética sobre isso: ultrapasso essa angústia no gosto ainda maior de ler escritores que escrevem sobre música e escritores, e, de igual modo, de músicos que escrevem sobre a literatura universal ou sobre música. E estes, são tantas vezes vistos como loucos, na grande maioria das vezes pelas razões erradas. Aquelas circunscritas a uma certa aura de incontornável transgressão. Ou como nos contava a Valéria Romão a propósito de Bukowski «na sua biografia nada parece inverosímil ou inadequado. Porque, se não aconteceu, podia ter acontecido». Mas não é essa loucura de que falo, como iremos descobrir mais à frente neste texto. Como também não é a descrita por John Mayer que insiste em que a inspiração pode acontecer desse lugar de loucura: “Maybe that’s what you have to do to be a genius, is you have to be mad. So if you get mad before the word genius, then maybe you can make genius appear, right?”.
Chegado aqui, deixem-me ao menos não perder o foco sobre o que dizia em cima sobre músicos e escritores. Para Caetano, o mundo não é chato, sempre dentro de uma certa verdade tropical. Patti Smith, por exemplo, a descrever como ficou sem fôlego e sem dormir depois de ler as «Crónicas do pássaro de corda» de Murakami – é simplesmente maravilhosa. Ela é sempre maravilhosa. Veja-se como nos conta: “cismava sobre o poço de Murakami. Na verdade, o poço parecia tão apelativo que eu própria queria encontra-lo. (…) Suponho que pareça ridículo ficar obcecado por um terreno a quase vinte mi quilómetros de distância”.
O que Patti vislumbrou dentro da canção dos Nirvana «Smells like teen spirit» só está ao alcance de uns poucos. Já era uma grande canção, mas Patti “pegou nela” e fez um acontecimento. Hoje, só me consigo lembrar dessa versão. E porque falava em música e citava também Murakami, às vezes é assim – “música, só música” sobretudo se encontramos pelo caminho Seiji Ozawa. Estes dois à conversa sobre a forma de livro, parece que estão na nossa sala de jantar. Ou então Júlio Cortázar, numa aula de literatura em Berkeley no início da década de 1980, a invocar um conto persa que inspirará John O’Hara a escrever o romance «Encontro em Samarra». O escritor argentino sublinhava aos alunos desta universidade a importância de perceberem as características do conto, aqui, como o mecanismo de fatalidade infalível. E se não conhece este conto, conserte nesta transcrição maravilhosa de Cortázar para uma sala repletas de alunos de literatura:
“é a história do jardineiro do rei que passeia pelo jardim, velando as roseiras, e, de repente, atrás da roseira, vê a morte e a morte faz-lhe um gesto ameaçador. O jardineiro foge, entra no palácio a correr e lança-se aos pés do sultão dizendo-lhe: Senhor, acabo de ver a morte e a morte ameaçou-me. Salve-me! O Sultão que gosta muito dele, porque cuida muito bem do seu jardim, diz-lhe: olha, sai, escolhe o meu melhor cavalo e foge. Esta noite estarás em Samacandra são e salvo. Como o sultão não teme a morte, sai por seu turno e começa a caminhar e atrás da roseira encontra a morte e diz-lhe: porque fizeste um gesto ameaçador ao meu jardineiro, de quem gosto tanto? E a morte responde-lhe: Não fiz um gesto ameaçador, fiz um gesto de surpresa ao vê-lo, porque tenho que me encontrar com em ele esta noite em Samarcanda”.
A belíssima história contada por Cortázar tem esse cumprimento da sorte, esse antecedente do fantástico como fatalidade. Apesar da vontade do Sultão – é precisamente este que envia o seu jardineiro para a morte. As artes cumprem em tal grau o propósito de fragilidade que ficam, em certas ocasiões, entregues apenas à mundividência da sua especificidade. Sozinhas, aparentemente, não cabem na grandeza que carregam. Falta colocar aqui o elemento que desencadeia em mim, as emoções apenas circunscritas à música, literatura e cinema e cujo o seu tempero procuramos tantas vezes nestes três – o humor.
E o caminho da literatura cruza-se tantas vezes com o do humor. Talvez seja este o apecto da loucura a que me referia há pouco. O elemento mais importante talvez continue a ser o que nos referia Ariano Suassuna: “eu tenho muito interesse por doido, pois eles veem as coisas de um ponto de vista original. E isso é uma característica do escritor também, o escritor verdadeiro não vai atrás do lugar comum, ele procura o que há de verdade por trás da aparência. O doido é danado para revelar isso”. E não será essa a característica essencial do bom humorista? Esse tal olhar de originalidade sobre a mesma realidade que se nos apresenta.
Aliás, por falar em humor e em Suassuna, ele, tem uma história que transcrevo aqui e que é uma delícia. O seu pai, que foi governador do Estado da Paraíba, construiu um hospício e colocou o nome do maior psiquiatra brasileiro da época. No dia da inauguração, muito orgulhoso da obra que tinha feito, o pai de Ariano chegou lá, com os médicos todos de branco receberam os doidos com uns carrinhos de mão que haviam sido adquiridos pelo governo para iniciarem a tal psicoterapia pelo trabalho, muito em voga na época. Um dos doidos estava com o carrinho de mão de cabeça pra baixo. Aí meu pai chamou ele e disse. “Olha, não é assim não que se carrega, é assim…” E o doido respondeu, eu sei doutor. Mas é que se eu carregar de cabeça pra cima eles colocam pedra dentro pra eu carregar. Não era um doido, era um gênio de uma cabeça formidável!»
Mas não deixa de ser irónico que no meio de uma certa loucura disseminada pelo mundo, as vozes mais sensatas vão sendo a de alguns humoristas e uns poucos escritores. Quando relembro a chapada que Will Smith dá a Chris Rock, relembro também que o mais inteligente que li ou ouvi sobre o tema, saiu de belos pensadores contemporâneos, tais como: Valter Hugo-Mãe, Ricky Gervais, Bruno Nogueira, Ricardo Araújo Pereira, Jim Carrey e até o próprio C Rock.
O humorista português, Bruno Nogueira, referia precisamente a propósito do politicamente correcto que vivemos na era de que para não desagradar aos leitores vivos, desrespeitamos os escritores mortos e o que eles nos deixaram. A infantilização do público leitor veio para ficar. Como se eles tivessem de ser protegidos de certas ideias ou ideais para não ser corrompidos por elas. Talvez não estejamos tão longe assim do dia em que, do mesmo modo que vemos diversos autores deixarem em nota de rodapé: “O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico”, em seguida teremos seguramente, uns poucos loucos a deixarem também em nota de rodapé: “O autor não escreve sobre os cânones do politicamente correcto”.