Faixa Atual

Título

Artista

Background

TSS3: O fim, como princípio de tudo…

Escrito por em 04/02/2022

«That Sweet Spot» (TSS), por Tiago Pereira da Silva

Crónica 3: O fim, como princípio de tudo…

Se o leitor procurar pela canção «Strange Fruit» numa qualquer plataforma streaming irá encontrar à cabeceira a versão inesquecível de Billie Holiday (considerada por muitos como a cantora mais influente de todos os tempos), logo de seguida perder-se-á com a incontornável versão de Nina Simone (a cantora que mais ouvi na vida), mas é provável que se emocione, às lágrimas, quando ouvir a versão que Jeff Buckley fez ao vivo no ano de 1993 em Nova Iorque no seu “Sin-é”. Na verdade, Buckley gostava tanto de tocar ali, onde as pessoas iam simplesmente para tomar um copo e conversar, que não é de estranhar que o registo que deu origem ao disco com esse mesmo nome seja, todo ele, uma das melhores formas de mergulhar na obra do músico nascido em Anaheim em 1966.

Jeff Buckley «Live at Sin-é» é hoje um disco de culto, um disco intimista, carregado de melancolia e humor. Tem nos monólogos e nas provocações de Buckley com a audiência, passagens cruciais para se perceber a sua relação com a música, a sua atitude em palco e os seus heróis musicais. É por isso que dizia há pouco que o facto do bar (deste registo ao vivo) ser desprovido de palco, talvez colasse bem com a imagem que temos dele, do músico que se apresenta tímido, despido de grandes adereços e que se apresentava tantas vezes só com a voz e sua guitarra. Como quem convida a audiência, por um lado, a não se distrair com ele, ou por outro, a se arrebatar com o ambiente intimista de um sonho recém criado por sua voz e guitarra. E como cantava bem Jeff Buckley. Há tanto Bluesy no seu tocar, como em sua cristalina e efusiva apetência para piruetas vocais.

Quando Jeff interpela alguém da audiência sobre o músico Nusrat Fateh Ali Khan, explicando-lhe que ouve o músico Paquistanês todos os dias e que é como um Elvis para ele, somos arrebatados pela sua apessoadíssima versão de «Yeh Jo Halka Saroor Hae». E como uma Jukebox musical gigantesca que vem do seu interior percebemos melhor a sua diversidade, ecletismo, a pele e a roupagem com que Buckley presenteava cada canção que tornava sua. «Live at Sin-é» é para ouvir e reouvir milhares de vezes, Buckley revisita desde Bob Dylan a Van Morrison, mas também encontramos as pérolas recém criadas por um músico, interprete e letrista emergente que viria a influenciar milhares de jovens aspirantes a músicos. John Mayer deve ter tido um choque tão grande ao ouvi-lo, pela primeira vez, que ficou irremediavelmente seu apostolo. Não admira por isso a dimensão do seu legado apesar da sua curta vida (30 anos) e brevíssima carreira. Tal como River Phoenix no cinema, Jeff é daqueles casos em que houve mais génio do que Biografia.

Há uma intensidade típica do Blues na sua música, que nos dá uma fragilidade e autocomplacência, talvez isso explique que muita gente que conheço não permaneça muito tempo seguido a escutar um disco da sua obra. É um estado emocional, que merece um recolhimento piedoso a seguir. Como se explorasse todas as fronteiras dos nossos medos, assaltasse tudo o que trazemos dentro.

Hoje não me canso de ouvir o que ele fez com a canção «Night Flight» dos Led Zeppelin neste concerto. Até aqui podemos vislumbrar um desfecho meio que trágico e premonitório. Como naquelas velhas histórias e lendas do Blues, como por exemplo um Robert Johnson que terá vendido a alma ao diabo em troca de inspiração musical, ou como no desfecho trágico de tantos músicos de Blues. Os Zeppelin eram para Jeff o que são para muita gente – algo difícil de igualar do ponto de vista musical. Veja-se que o primeiro disco que Jeff recebeu na vida foi justamente o vinil de Physicall Grafitti dos Zeppelin. Sua trágica morte a 29 de Maio de 1997, por afogamento no Rio Wolf, um afluente do Mississípi (símbolo iconoclasta da origem do Blues), foi antecedido de insólito sinal de que há coisas incríveis, já que um dos amigos que se encontrava consigo e que guardava algum material para gravações no carro, ouvia um Jeff a nadar e a cantarolar lá em baixo no rio o «Whole lotta love» dos mesmos Zeppelin. A banda inglesa aparece ironicamente como o inicio e fim. Para Jeff Buckley o fim da sua vida significava em grande medida, mais do que o nascimento de um mito, o início de uma figura de culto na cena musical. Retórica sentimentalista dirão alguns. Talvez…