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TSS1: The Band who saw Carmen and the Devil walking side by side

Escrito por em 17/01/2022

«That Sweet Spot» (TSS), por Tiago Pereira da Silva

Ferreira Gullar costumava dizer que: – «Por isso existe a arte. Porque a vida não é suficiente». That Sweet Spot tem essa intenção. O da procura do arrebatamento emocional. O meu único desejo é o de desafiar o leitor a submergir em determinadas passagens de canções, discos, bandas. Por vezes também filmes. Toda a arte que que possa ser, para mim, de bom gosto. Elas aparecerão por inteiro, ou, só parte integrante do que possa ser o seu “Clímax”. Aquele momento particular em que uma obra atinge o seu estado de arte. Todo o mérito que possa haver nestas crónicas, a existir, estará por um lado e naturalmente vinculado às obras apresentadas, por outro, ao trabalho feito pelo leitor. Nada mais que isso.

Crónica I: The Band who saw Carmen and the Devil walking side by side

Há dias “cruzei-me”, por um acaso feliz, com o documentário de Daniel Roher «Once Were Brothers», que nos conta a perspectiva ou olhar do músico Robbie Robertson sobre a história da sua The Band. A mesma que quando lançou o seu primeiro disco «Music from big Pink», ainda nem sabia exatamente “como se chamar?”. A mesma que quando chegou aos ouvidos de Eric Clapton do outro lado do atlântico, o abalo foi tão grande que o forçou a largar o seu super Trio Cream. Aliás como vemos o próprio Clapton assumir no filme, por volta de 1968, chegou a “insinuar-se” a Robbie para a eventualidade de se juntar à banda. O “Deus” da guitarra britânica, sentia que os The Band tinham esse elemento essencial, de perceberem o papel que cada um desempenha dentro da banda. Elemento esse, que Clapton ainda não tinha encontrado, muito menos nos Cream. George Harrison também andou a bater à porta deles.

O curioso é olhar para o impacto que teve. Ou ausência dele. Tal como aconteceu por exemplo com os Velvet Underground and Nico e o famoso álbum da banana, «Music from Big Pink» à época passou relativamente despercebido do grande público. Quase ninguém o comprou, possivelmente por ser um disco contra-corrente da era do psicadelismo. Hoje, curiosamente, é uma referência incontornável. 55 anos volvidos da sua edição parece-nos absolutamente fundamental continuar a celebrar a obra inteira dos The Band.

No filme de Roher, Taj Mahal (por exemplo) considera-os como o equivalente Americano dos Beatles. E é muito representativo ouvir do próprio Bruce Springsteen “que nenhuma outra banda se ter aproximado tanto, quanto eles, da premissa de que uma banda terá de ser sempre muito mais do que a soma das partes que a compõe”.

Falar do legado deixado por este autêntico Band of Brothers, que de facto foram: Robbie Robertson (guitarra, paino e voz), Richard Manuel (Piano, saxofone, órgãos e por vezes bateria e claro voz), Garth Hudson (órgão, piano, clavinete, acordeão), Rick Danko (baixo, violino, trombone e voz), todos Canadianos, e finalmente o Norte-Americano Levon Helm (na bateria, bandolim e voz – é falar de pelo menos 3 revoluções culturais de que fizeram parte e até mesmo ajudaram a construir.

O quinteto foi daqueles prodigiosos grupos saídos da década de ouro da música (anos 1960), que quando mergulhamos na sua discografia, parece não existir mais nada no que à música diz respeito. E desculpem-me a heresia, eu talvez vá mais longe que Taj Mahal. Penso numa geração em que saíram nomes como: Beatles, Stones, Hendrix, Dylan ou Beach Boys (só para citar uns poucos) e digo-vos assim: Vão lá ouvir os dois primeiros discos dos The Band. É estranho e mágico ao mesmo tempo. E diz isto um insuspeito fã dos Beatles, que sabe bem que eles foram como que a minha adição da adolescência. Só eles seriam capazes de fazer duas obras de arte como por exemplo: «A Day in Life» ou «Strawberry Fields». Todavia se retiramos a maravilhosa e insubstituível produção de estúdio (destes temas) e de certa forma as canções parecem perder a sua força fundamental. Em nenhuma canção dos The Band isso acontece. Parece quase lamechas, mas eram “apenas” cinco amigos inseparáveis, dotados de uma inspiração e talento divinos enquanto músicos, para servirem a ideia original de uma canção. Numa ode de memoráveis arranjos e dentro do tão esplendoroso viveiro da música norte-americana, como que redefiniram o American Song Book. Aqui não há acrobacias de estúdio, como também não há os “secantes” floreados de virtuosismo pelo virtuosismo. Impera o simples. Mas bolas, tão bem que tocavam estes tipos.

Eles emergiram nesse tempo maravilhoso, em que a música era feita com tanto afecto, que tal como descreveu (e tão bem) Cameron Crow, apesar dos milhões de seguidores deste estilo espalhados por todo o mundo, a música parecia ser feita exclusivamente para uma pessoa. Sou para um fã, daqueles que destila música por todos os poros. E isso fazia toda a diferença.

Não estou aqui para vos falar do filme de Daniel Roher, apesar de a esse pretexto se perceber igualmente a irmandade que existiu entre elementos da banda. E é exatamente por isso que nos emocionamos, quando ouvimos do ainda vivíssimo Robbie Robertson o relato do período negro da banda e em que assiste aos seus “irmãos”, sobretudo Levon e Richard, a mergulharem em definitivo no álcool e heroína. Para Richard esse abismo precipitou o seu desaparecimento prematuro. O expectável fim da banda foi sendo adiado por Robbie. Para nossa sorte, o momento da despedida foi eternizado por Martin Scorcese, no clássico gravado em San Francisco no final de 1976: «Last Waltz». Mas já lá iremos.

Teremos, naturalmente de voltar bem atrás. Não ao tempo do seu inicio com o rockabilly Ronnie Hawkins e o inicial The Hawks. Mas algures entre as gravações daquilo que viria a ser o disco de Bob Dylan e os The Band «Basement Tapes» gravado em 1967 (e editado em 1975) num improvisado estúdio/armazém em Woodstock, surge pouco tempo depois o tão esperado álbum de estreia dos The Band «Music from Big Pink». A banda, que havia sido convidada por Bob Dylan (este ainda a recuperar de um acidente de mota de julho de 1966) para gravar informalmente com ele novas composições, viveu e gravou nesse estúdio improvisado” precisamente a sua nova casa “Big Pink”. Se formos um pouco atrás, na digressão europeia de Dylan em 1966, a banda de suporte que ouvimos no disco (Live 1966) são precisamente eles.

É curioso como há inúmeros relatos de que para a maioria desta geração dos anos 1960, a arte de escrever uma canção (no que à letra diz respeito) foi totalmente revolucionada por Bob Dylan, tal como sabemos. Robbie Robertson é mais um. O próprio Lennon ficou louco com Dylan. Nunca ninguém tinha colocado poesia dentro de uma canção Folk ou Rock com aquela profundidade. Esse foi, por exemplo, o derradeiro empurrão para os Beatles se libertarem das canções pop e leves que abraçaram até 1964/65. Mas se há pouco falava dos anos de 1960 como a década de ouro da música, com uma singularidade de bandas e nomes, como em mais nenhum outro período da história da música, também o foi por causa da capacidade que os músicos tiveram de se influenciar uns aos outros. E se Dylan não pôde esperar pela mudança, nem tão pouco fazer “só” parte dela, ele foi a mudança personificada na sua música, também ele se deixou deslumbrar pelo universo das bandas de rock e o que isso poderia oferecer de diferente na abordagem do som. Poucos perceberam à época, para os que o acusaram de traição, mas Dylan quis simplesmente “montar” uma super banda de rock. E está-se mesmo a ver quem!

Parece é que o próprio Dylan quando ouviu a canção «The Weight», justamente de «Music From Big Pink» pela primeira vez, perguntou a Robbie se tinha sido mesmo ele a escrever aquela letra! Também ele não podia acreditar naquela pérola nascida mesmo ali diante das suas “barbas.”.

The Weight, que tal como Up on Cripple Creek escrita por Robbie – parecem ter essa propriedade. A de nos contar uma história. No caso de The Weight remete-nos para a viagem feita pelo próprio Robbie Robertson aos 16 anos, saído do Canadá para o Delta do Mississípi. Essa raiz da canção, não tem nada de subtil ou invisível, pelo contrário. Faz-nos tropeçar nela o tempo todo. Como que numa deliciosa viagem musical por uma certa América.

The Weight é provavelmente a canção deles que mais vezes foi tocada por outros artistas. Desde a cover de Aretha Franklin, ou a mais recentemente de Cassandra Wilson. Mas é talvez em «Last Waltz» que ouvimos a sua versão definitiva. A guitarra de Robbie nunca foi tão intimamente ligada à voz de Levon. Se silenciássemos todos os instrumentos à excepção das teclas de Richard Manuel e Garth Hudson, neste tema, e já teríamos algo para nos lembramos durante décadas.

Talvez valha a pena que me refugie do que disse o próprio Robbie Robertson da voz de Levon: “parece simples, mas como é que alguém toca bateria desta maneira e ao mesmo tempo canta como ninguém dentro do género”. A verdade é que também não sei se Robbie Robertson, não será o guitarrista mais subestimado da história. Ouvi-lo como lead guitar do tema «Sign Language», do disco de Eric Clapton «No reason to Cry» é absolutamente comovente. Ou o trabalho da sua guitarra (ritmo e solo) em temas dos The Band como «Ophelia» ou «The W.S. Walcott Medicine Show»
Mas voltando a «Music from Big Pink», de onde saíram pérolas como «We can talk» em que para além da excepcional capacidade musical destes cinco instrumentistas, percebe-se a combinação perfeita daquilo a que Bruce Springsteen apelidou: três das melhores vozes brancas de sempre reunidas numa só banda. Quer dizer, Springsteen é Springesteen e é comovente quando ouvimos alguém da sua importância dizer: – “Qualquer banda que tivesse um dos três cantores dos «The Band» teria um dos melhores cantores do mundo. Os «The Band» tinham três do mesmo calibre. (…) quer dizer está tudo dito, não é por acaso que eles se chamavam The Band.”.

Há pouco falava de Clapton, oiça-se o muito ovacionado disco de despedida da banda «Last Waltz». É demasiado evidente a magia entre Clapton e os cinco membros da banda no tema «Further on up the road», que o realizador Martin Scorsese sob tão bem captar com esse olhar de câmara testemunha. Por muitos críticos, o melhor filme concerto da história. Nunca antes uma equipa de filmagem e um realizador tinham “mostrado” um concerto para o ponto de vista da audiência. Houve essa intenção, da câmara como músico em cima de um palco. Há tantos “Sweet Spots” que é preciso ver e ouvir o filme por inteiro. Como aquele em que eles tocam «Caravan» com Van Morrison, aos 02:23 min, com um belíssimo “and the caravan is on… my friend …all right”, em que Morrison, belissimamente antecipado pela secção de metais, com a sua voz “rouca e anasalada” mergulhada em doses consideráveis de Grand Marnier, e, que nos transporta de facto para uma das coisas mais bonitas daquela noite memorável. A guitarra de Robbie nessa parte é também ela inesquecível.

Apesar de ser das canções mais apetecíveis de ouvir em qualquer versão e com mais motivos de interesse, não haverá também muitas vezes em que «Up on Cripple Creek» tenha saído tão bem ao vivo como em «Last Waltz». Mas se voltarmos à versão de estúdio (do segundo disco da banda «the Band»), seremos com toda a certeza arrebatados pelo trabalho magistral de Garth Hudson no seu Hohner Clavinet. Aliás como o próprio Robbie Robertson viria admitir, converte-se muito mais do que qualquer outro instrumento, naquela canção, numa lead instrument. Aquele “wah wah” funky sound antecipa o que Stevie Wonder viria a fazer em Superstition. Estávamos apenas em 1969. Garth Hudson é tão influente como discreto. Sem nunca reclamar para si qualquer dimensão inovadora, mas é de todo impossível ouvir o tema «Chest Fever» e não nos lembramos de «Lazy» dos Deep Purple lançado quatro anos depois.

Posso ficar meses sem os ouvir, mas quando volto a eles tenho sempre essa sensação de lugar cativo no meu coração. Como se não houvesse mais nada. Esta lindíssima banda de cinco amigos músicos geniais e que me acompanhará sempre. Oxalá fosse ainda mais celebrada. Mais do que o merecimento da Banda, sairíamos todos a ganhar com isso.