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“Hamster clown” estreia no S. Luiz

Escrito por em 22/06/2021

A tentativa de libertação de um hamster encerrado numa gaiola foi o ponto de partida de “Hamster clown”, uma criação de Ricardo Neves-Neves e Rui Paixão, que se estreia na quarta-feira no Teatro S. Luiz, em Lisboa.

Sem qualquer fala, o espetáculo criado por Ricardo Neves-Neves e Rui Paixão, que interpreta, acaba por se tornar numa viagem alucinante que integra dança, performance, mímica e teatro, nas várias tentativas de libertação por que passa a personagem.

“Um espetáculo onde a fantasia é assumida como material de trabalho e a ficção é valorizada na arte”, disse Ricardo Neves-Neves à agência Lusa, sublinhando que “Hamster clown” foi pensado desde logo para ser feito sem texto.

Trabalhar sem texto era uma vontade do encenador, que já nos habituou a espetáculos em parceria com a música. E embora há algum tempo pretendesse fazer uma peça sem texto, “nunca tinha tido coragem para o fazer”.

No verão de 2020, “ganhou coragem” e, depois de conhecer o trabalho de Rui Paixão, que não conhecia pessoalmente, telefonou-lhe e convidou-o para trabalharem juntos. Rui Paixão, o artista que em 2019 era a figura central de um espetáculo do Cirque du Soleil, em cena na China, aceitou o desafio e, ao fim de algum tempo, perceberam quais eram os gostos de cada um e as referências que tinham no teatro, na dança, performance ou no ‘clown’.

“Mas também fomos ver muita coisa de fotografia, de pintura, muito cinema, muita música, muitos vídeos do youtube de artistas maravilhosos que não conhecemos e que o Rui conhecia”, acrescentou Ricardo Neves-Neves.

Foi assim que foram juntando material para o espetáculo que agora se estreia na sala principal do S. Luiz, ao qual não foi alheia uma ideia do encenador e realizador Jorge Silva Melo, partilhada nas redes sociais, sobre o facto de se fazerem espetáculos “só pela beleza”, frisou Ricardo Neves-Neves.

“Então, no início, fizemos muitas coisas só pela beleza, só porque gostávamos e só porque tínhamos prazer ou em ver, ou em ouvir, ou em falar delas. Ou, depois, no caso do Rui, em fazer na cena”, sublinhou.

Só depois perceberam que estavam a criar “conteúdos”, alguns dos quais “relacionados com sonhos e pesadelos recorrentes, e algumas lógicas do subconsciente”, disse. E, em cima disto, os criadores tinham também muita coisa relacionada com o ‘drag’, expressão que Ricardo Neves-Neves disse ter aprendido há pouco tempo que Shekespeare foi o primeiro a usar, e que significa “dress as a girl” (“vestido como uma rapariga”).

Daí que a personagem interpretada por Rui Paixão seja “uma hamster”, numa personagem em que nada do corpo de Rui Paixão seja revelado ao longo do espetáculo. Nem o cabelo, nem a cor da pele, que está pintada, nem a figura masculina.

Num cenário onde impera o verde e o modelo de seis estátuas renascentistas de nus, o confinamento e a solidão perpassam ao longo do espetáculo e das tentativas de libertação da personagem da peça.

“O que se realça mais em mim quando estou em palco é o sentido de transfiguração”, afirmou Rui Paixão a propósito da personagem que interpreta e que, ao longo do espetáculo, vai sofrendo vários níveis de desfiguração.

Ao corpo feminino de corte burguês, com que Rui Paixão inicia a interpretação, rapidamente se vão sucedendo figuras, tanto projetadas num círculo central que domina o fundo de palco, e que representa a gaiola de onde o hamster se tenta libertar, como, em palco – caso de um gato, um T-rex ou um polvo –, obstáculos à libertação ou sonhos e pesadelos recorrentes da personagem.

Para Rui Paixão, a “transfiguração” marca, assim, a viagem do corpo desta personagem que umas vezes parece real, outras um ‘cartoon’ ou, outras ainda, uma marioneta. A ideia dos universos paralelos está também muito presente no imaginário desta peça, disse Ricardo Neves-Neves, à Lusa: “A ideia de o ser humano ter evoluído a partir de um hamster e não de um macaco”, e de que “isto não fosse como pensamos e sabemos”, referiu, a propósito.

Este espetáculo “assumiu a fantasia como material de trabalho” e a ficção como algo “que não deve ser deitado fora, e que deve fazer parte da arte”, frisou. “Hamster clown” assenta também na procura do sentido verdadeiro da palavra liberdade e, nessa procura, a personagem acaba por ter de passar por uma “’marosca’ de labirintos e de tentativas de fuga”, até chegar ao fim para a fuga maior, referiu Rui Paixão.

Questionado sobre o que acontece à personagem, o ator disse entender que, “no final, morre”, sendo esta sorte entendida como um “voltar ao início”. “A liberdade é uma luta constante; é uma resistência e uma resiliência”, justificou Rui Paixão.

A cenografia é de José Manuel Castanheira, a caracterização e adereços, de Cristóvão Neto, os figurinos, de Rafaela Mapril, o desenho de luz, de José Álvaro Correia, a sonoplastia, de Sérgio Delgado e, o design de vídeo, de Oskar&Gaspar.

“Hamster clown” está em cena até 4 de julho, com espetáculos de quarta-feira a sábado, às 20:00, e, ao domingo, às 17:30. Loulé, Ovar, Odivelas, Braga e Ílhavo são locais para onde “Hamster clown” seguirá, depois, em digressão.