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PodCartas #27 – Coisas a se transformar

Escrito por em 27/01/2021

 
Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 2021

Inês, querida

Te escrevo enquanto tomo um mate com hortelã bem gelado, erva orgânica, chá feito por mim. Sei que você gosta. Agora é noite, e não costumo tomar mate em horas já avançadas do dia, já que o normal é a cafeína me transformar numa coruja madrugada adentro. Mas hoje estou sonolenta, e me arrisquei num copo que me desperte um pouco ao mesmo passo que me refresque nessa segunda-feira quente deste verão pandêmico. Uma quentura que amolece.

Já vamos para um ano dentro de casa. Fevereiro está a um tropeço, e março, quando tudo começou por cá, nos espera logo em seguida. Já vamos? Quem? Boa pergunta… Quase ninguém. As ruas fervilham de gente indiferente aos mil duzentos, mil e trezentos brasileiros que enterramos diariamente neste país onde um projeto real de vacina é uma ideia vaga e difusa. Vago e difuso é também qualquer plano de nossas já empossadas – ou reempossadas – autoridades municipais para trazer uma mínima disciplina às pessoas. Nada. E assim seguimos nessa selvageria brasileira capaz de encher de espanto um viking invasor de outrora. Somos uma vergonha. Me constranjo por tudo isto aqui. Me constranjo e me revolto.

Hoje tive de sair da minha bolha de Laranjeiras, que geralmente no máximo, e esporadicamente quando algum compromisso ou necessidade me obriga, se estende a Botafogo ou ao centro da cidade. Mas hoje tive de ir a Ipanema, e olhe que de novo cá estou eu com histórias para contar por causa do Banco do Brasil. Hoje tive coisas a resolver lá, na minha agência que fica em Ipanema, do tempo em que morei lá. Tentei, com pouca esperança, me arranjar pela agência aqui de Laranjeiras mesmo, para onde, penso, eu já devia há tempo ter transferido minha conta, mas não houve jeito: quando vi, já estava eu num metrô indo à Ipanema, neste dia ensolarado que me fez me arrepender logo de não ter colocado um biquíni e uma canga na bolsa. Desde março do ano passado que não vou à praia, que não sentia meus pés descalços na areia molhada à beira mar. Ralho comigo mesma por não ter me atentado com o biquíni enquanto visualizo com os olhos do meu desejo um mar verde translúcido , fresco e calmo numa praia que se pode chamar de vazia neste inicio de semana. Penso logo em comprar um biquíni e uma canga por lá mesmo, e me dar este pequeno refrigério, um reencontro com Iemanjá e Netuno e todos os bons deuses que o oceano nos proveja. Sim, depois do banco. Loguinho depois…

Mas o metrô não está para devaneios, e vou me horrorizando, me irritando, me mordendo a cada passageiro que vejo sem máscara ou que, mesmo usando uma, ostenta para o lado de fora um nariz cujas narinas se agigantam ante meu olhar indignado. E é isto: em meio à  pandemia, a nossa selvageria é capaz de me transformar de uma sonhadora numa atenta e empedernida contadora de narizes e bocas à mostra, quase uma obcecada. O que de nada serve. O vagão corre por baixo da terra, fechado, todos ali confinados, e basta um espirro, uma tossida ou mesmo uma fungada irresponsável para colocar quantos ali a perder? A maioria, sim, disciplinada, apenas olhos e testas de fora. E… minha amiga, sigo eu, muito brava, aqui, dentro de mim, querendo amassar cada nariz de fora. Sim, também tenho minhas selvagerias, embora as reprima na maior parte do tempo.  Lá pras tantas, um homem para o qual eu já havia lançado, em vão, alguns olhares fulminantes, chega a mim e pergunta com um sotaque espanhol se o metrô passaria por Copacabana.

“Por favor, cubra o nariz para falar comigo”

“No puedo respirar”

E é assim, parece que a irresponsabilidade aliada à cara de pau não é predicado exclusivo de brasileiros.  E conter meu ímpeto de quebrar o nariz do homem que me indaga é o que acabou por me permitir chegar ao banco sem maiores sobressaltos. Mas ainda assim nada é simples, tenho de esperar para entrar na ala da gerência da agência. Fico na fila, mantendo distância e dando um passo à frente a cada vez que alguma criatura faz a caridade de passar pela porta giratória, indo embora. Até que entro, mas para continuar a espera lá dentro, pelo menos com mais conforto. Pensar na praia ajuda a passar o tempo.

Então chega a minha vez, e vou me dando conta da quantidade de coisas que tenho para resolver ali, só ali. Ora, Inês, por que raios eu ainda não mudei a minha conta para a agência de Laranjeiras? Fiquei ali, quase umas duas horas com o gerente, e, quando resolvi tudo, já estava azul, roxa ou de alguma cor que expressasse o meu estado da mais absoluta fome. A praia já não me parecia mais tão atraente quanto o cappuccino com pão de queijo pelos quais tenho a impressão de ter pago uma indecência. Mas que saudade eu estava de comer um bom pão de queijo.

Quando vou ao centro, seja onde for, ou para fazer o que for, passo na minha cafeteria favorita, e, debruçada sobre seu balcão me sinto feliz. Estava emocionada quando, em agosto do ano passado, fui lá pela primeira vez desde março. Desde março. Desde março. Tudo parece contar a partir de março. Sentia saudades da minha cafeteria da rua do Carmo, e me envergonhava por este meu arroubo afetivo burguês em meio ao pandemônio que estávamos e ainda estamos. Mas como sentia saudades de tomar aquele cappuccino incrível e puxar assunto com algum pobre desconhecido inocente de ter uma maritaca falante ao lado. Ou mesmo de abraçar sorridente alguns dos tantos amigos do mundo do café que sempre marcam presença lá. Ora, Inês, adoro o centro da cidade, e tenho realmente pena de não termos batido pernas por lá.

Mas enfim, voltemos a Ipanema: como meu pão de queijo, e amo, amo pão de queijo. Aquele ali, não precisam me dizer, é feito com bom queijo, boa manteiga e espero que com ovos sem hormônios de galinhas amontoadas e estressadas. O farelinho crocante do polvilho que desprende de toda a sua casca me lembra o pão de queijo artesanal que o marido de uma grande amiga faz, já há décadas, em sua casa, seu paraíso particular com direito a rio passando no quintal em Visconde de Mauá, outro passeio, em meio à exuberância atlântica da Serra da Mantiqueira que tenho pena de você não ter dado. Mas ahhhhh, o farelinho… Passo-lhe o dedo, levo-o à boca, e fico ali naquele pequeno idílio de estar na cafeteria que depois vai saber bem me cobrar pelo prazer proporcionado.

E eis que chego à praia. Já são quase quatro da tarde, e o calor amainou. Há bastante gente ali, mas nada comparada à loucura da multidão que, horrorizada, nos finais de semana vejo pela televisão sem deixar um palmo de areia a mostra. A segunda feira praiana me parece minimamente civilizada, o que me faz tirar o sapato e caminhar até a beira do mar. Sinto a água me tomar os pés, e depois deixa-lo, e depois toma-lo. Vejo o prédio onde morei e sorrio: fui feliz ali. Sim, tive o privilégio de morar num prédio à beira da praia de Ipanema, e na minha cama, ao amanhecer, abria os olhos enquanto via a bola vermelha do sol se levantando por trás das pedras do Arpoador. Um despertar diário para se carregar sempre na memória. Olho o mar e olho os prédios. A índia adolescente que eu era, chegada aqui nos anos 90 das falésias e coqueirais do sul da Bahia, não entendia o que tanto falavam sobre a beleza do Rio. Como uma praia de onde se via tantos prédios poderia ser bonita? Me ressentia, contando os dias para poder fugir para o meu paraíso. Vou caminhando, e vejo o Cristo, e sei que numa linha reta está a Lagoa, o privilégio de acordar vendo o mar, tomar um suco verde e ir correr na Lagoa ora avistando o Cristo, ora avistando a Pedra da Gávea, ora o Parque da Catacumba… já faz mais de dez anos que minha rotina era esta, e lembro dela com um carinho desprovido de saudades. Até que a indiazinha aqui descobriu, em Niterói, Itacoatiara. Aquilo sim parecia de fato uma praia, e mesmo morando na zona sul do Rio, preferia percorrer a distância para ir à Itacoatiara. Eu era uma indiazinha teimosa e obstinada…

Vou caminhando pela areia, e parece que minhas quase três décadas de Rio vão saltando aos meus olhos surpresos. Então moro um bom bocado de tempo em Niterói, e de lá venho para Ipanema, e, como num toque de mágica, caio de amores por aquilo tudo, a despeito dos prédios. Me torno urbana. Moro em Botafogo, o Rio parece florescer, o Rio parece fervilhar, já nem implico mais com a Copa e as Olímpiadas, e até concordo que talvez nos seja boa a vinda dos eventos. Será??? A verdade é que hoje o mar não está dos melhores. Está turvo. Alto. Um tanto indócil. Completamente distante da perfeita imagem mental que criei antes de me enfiar no metrô virulento. O tipo de mar no qual não costumo entrar.

Mas então tudo vai decaindo, o Rio, o Brasil… seguramos até um pouco depois das Olímpiadas, zelosos em abrilhantar corretamente nossa apoteose aos olhos do mundo. Ali, com uma presidenta suspeitamente deposta, minha empolgação já havia arrefecido, e o máximo que fiz foi ver um esporte ou outro pela TV, alheia à euforia das ruas, mas chorei ao ver, no evento de encerramento no Maracanã, “Mulher Rendeira” cantado e encenado pelas Ganhadeiras de Itapuã. Que lindeza aquilo… E Mariene de Castro cantando “Pelo tempo que durar” de Marisa Monte e Adriana Calcanhoto sob a chuva que veio apagar a chama olímpica… outra lindeza… novas lágrimas… os olhos aqui marejam só com a lembrança. Aqui, enquanto escrevo. Mas enquanto caminho na praia de Ipanema os prédio me fazem voltar a querer Itacoatiara, que permanece, incrivelmente, quase a mesma. E esta índia litorânea vem retornando, e há um bom bocado que olha para as montanhas e deseja subir a serra e lá ficar. Falta o que para isto? Talvez coragem. Talvez mais certeza…

Meus pés vão se despedindo do mar e tomando o rumo da volta para casa, e já estou pensando em te escrever. Vou tomando o rumo de casa deixando, tranquila, os meus tempos de Ipanema para trás. Tenho saudades da minha janela de frente para a mata em Laranjeiras e nesses dias quentes as cigarras estão um tanto namoradeiras, e o canto alto e constante de seus acasalamentos tem sido a melhor música para os meus ouvidos. Este verde, estas cigarras e estes grilos têm grande responsabilidade em minha ainda permanência ao nível do mar.

Volto para casa, abraço Fiódor com saudades, e vou à cozinha buscar o mate que preparei e deixei gelando antes de sair. Estou sonolenta, mas tenho uma amiga para quem quero escrever. A carta será longa, pois nesses tempos pandêmicos, uma simples ida ao banco em outro bairro pode tornar-se ocasião de termos quase que a vida inteira projetando-se aos olhos, e como é de forma corrida e atabalhoada que aqui tento te contar,

sem me alongar em demasia. Esses tempos pandêmicos são estranhos, capazes de transformar o outrora simples, corriqueiro e desimportante num grande evento. Pensando bem, melhor deixar a conta na agência de Ipanema mesmo. E… pensando bem, melhor parar por aqui. Já escrevi um bom bocado… Deve ser porque na cafeteria de Ipanema não havia um balcão com algum desavisado para eu matraquear. O jeito foi tagarelar por aqui.

Grande beijo,

Bárbara

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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