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PodCartas #25 – Presentes

Escrito por em 15/01/2021

Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 2021

Inês, querida

Hoje abri a porta de casa e me deparei com uma caixa. Fiquei olhando, curiosa. Não me lembrava de ter feito alguma encomenda ou comprado algo pela internet, mas aqui estava a caixa com uma etiqueta dos correios no modo mais rápido e caro de envio. Peguei-a, entrei e fui abrindo sem me ocorrer de buscar um remetente. E eis que vejo três pacotinhos de um papel carmim brilhante. Sorri. Era um presente. Um presente goiano, do cerrado goiano para ser mais específica.

Costumo falar brincando, mas nem tanto, “quer me fazer feliz, me dá comida”, uma verdade que serve também para as bebidas. E eis que meu presente é um café goiano produzido de cabo a rabo por uma amiga querida. Esses pequenos luxos que a vida nos dá: amigas que nos dão presentes. Semana passada ainda recebi outro: um livro. Este eu estava esperando, até porque a amiga e escritora que me presenteou estava quase tendo um filho com a demora dos correios. ‘tranquila, eu dizia, loguinho chega”. Até que chegou. E é assim que posso dizer que de fato estou começando o ano: ganhando presentes.

Presentes que ajudam a diminuir a solidão –  já não mais solitude – imposta pela pandemia. Por aqui os números de casos estão subindo vertiginosamente, e voltamos a bater mais de mil mortes por dia. Não que isto pareça nos importar, já que uma parte significativa da população, embriagada pelos ares a calores do verão, parece viver alheia à morte que ronda e pode nos pegar, ou aos que amamos, na próxima esquina. Uns ainda exaltam o presidente, aplaudindo e até apregoando seu espetáculo de irresponsabilidade para todo o planeta. E falso é chamar isto de apenas irresponsabilidade, pois parece haver um quê de psicopatia, de morbidez, de crueldade em sua forma mais pura neste homem que colocaram para nos desgovernar. E seria só frustrante se não fosse desesperador ver boa parte dos países já iniciando seus respectivos processos de vacinação, enquanto aqui hoje o dito ministro da saúde disse que a nossa vacinação começará na “Hora H e no Dia D”, e o mais provável é que tenhamos de consultar alguma espécie de oráculo que venha a nos traduzir em algo palpável, se é que isto é possível, o que quis dizer o general em farda que foi o que aceitou permanecer no comando da pasta da saúde mesmo com todos os desmandos do psicopata presidente. Os que eram médicos não duraram no cargo. Pra encarar tudo isto sem perder a sanidade, é preciso se abrigar na alegria dos afetos…

Mas engraçado é como momentos da nossa vida emergem do passado e se cruzam com o agora. Com os pacotes de café nos braços acabou por me ocorrer uma música. Uma música dessas que nos aparece de surpresa num dia em que estamos em casa desavisadas, cozinhando, fazendo uma faxina, ou simplesmente passando uma vassoura na sala com o rádio ligado que nos brinda com um lançamento. E lá estava eu, seguramente já há mais de quinze anos, no meu então apartamento de Niterói, quando uma música chamada Os Presentes começou a tocar. Eliana Printes era a cantora cuja voz eu ali escutava pela primeira vez. Tempos fáceis são esses dos aplicativos, que, mimados, com apenas alguns cliques no celular que temos à mão, já encontramos as músicas desejadas. Tempos fáceis e pouco românticos, sem a espera para que a música toque novamente na rádio, e a alegria singular de ouvi-la, já em seus primeiros acordes, anunciada pela voz locutora. Aquele momento de parar com tudo, fechar os olhos e suspirar, enquanto todo o resto do mundo parece poder esperar. Depois a caça pelo CD, nem sempre fácil de encontrar mesmo sendo lançamento.

Me lembro de ter percorrido distâncias consideráveis por um CD. Isto sem falar na época dos vinis, que também era a época das fitas cassetes preparadas em nossos moderníssimos aparelhos três em um, o botão de gravar e o de pausar apertados ao mesmo tempo, enquanto fazíamos uma sentinela atenta e disciplinada à espera da música desejada tocar na rádio e ser gravada, para depois ser infinitas vezes tocada.

A Os Presentes de Eliana Printes não precisou de tanto, bastou procurar o CD para logo encontra-lo, e o tenho comigo até hoje, como também ainda tenho todos os meus CDs e DVDs. Mas, como meu micro system quebrou, acabei por recorrer ao aplicativo na televisão, e eis que nuns três ou quatro cliques a música do meu apartamento de Niterói num tempo que já me parece um bocado longínquo, inundou o meu apartamento de Laranjeiras nesse tempo de agora, tão intenso e tão cheio de vazios. A música preenche os vazios, tal qual também fazem os presentes, tanto os que dou quanto os que recebo. Cafés, livros, chocolates, cachaças… tudo ganha um significado ainda maior, ou talvez as privações da pandemia apenas nos dê a dimensão real de certas coisas.

Antes do Natal, uma amiga chegada de uma viagem com o marido disse que passaria aqui em casa para me deixar umas framboesas, e ela me entregou as frutinhas num potinho pequeno, possivelmente tiradas de um pote maior, comprado e trazido do lugar. Creio que o casal de amigos queridos, com este gesto de me trazer num potinho as framboesas, compartilharam comigo um pouco do passeio no qual não pude acompanha-los, imersa em trabalho como eu estava aqui, e, ao ver as framboesas no potinho entendi este compartilhar muito mais do que se eles tivessem simplesmente adquirido lá toda uma embalagem de framboesas para mim. Não seria mesma a coisa. Não teria o mesmo significado. Como um chocolate que comemos e gostamos tanto, que guardamos o último quadradinho para alguém que amamos, para que seja presenteado o quadradinho do chocolate original, daquele que nos fez pensar na pessoa ao coloca-lo à boca. Nenhum chocolate inteiro seria capaz de dizer tanto…

A música da Eliana Printes fala nos mais diversos presentes: uma estrela do firmamento, um novo ritmo, uma televisão, cartas de amor… e fecha com um irreverente “casa, comida e um milhão por mês”, o que, vamos combinar, não é nada mau. Mas por ora eu fico aqui os cafés, livros, framboesas e cachaças que ganho. Mas por ora eu fico aqui com as cartas que recebo. E fico feliz. E é o que me inspira num dia xoxo, quente e pandêmico como hoje.

Grande beijo, minha amiga. Fico no aguardo do seu presente. Fico no aguardo da sua carta.

Bárbara  

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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