PodCartas #24 – Histórias hilárias, escritora feliz
Escrito por Inês Henriques em 07/01/2021
Lisboa, 7 de janeiro de 2021
Oi, Dona Bárbara,
Feliz 2021! Senti a tua ausência nessa última semana, mas quem não precisa de um tempinho para se restabelecer, de um silêncio básico? Todo o mundo, eu entendo. As festas passaram, por aqui perdi a passagem do ano. Aquele pé direito na frente, as 12 passas – uva-passa para ti, eu acho – ao compasso da badalada, um dinheirinho na mão, a euforia falsificada (não sei se já te disse, mas a Passagem do Ano é o que mais odeio, mas sou assim desde criança), tudo isso, perdeu-se. Ao contrário de todos os outros, esse ano ficou tudo em casa, então o panelaço foi intenso, a que se juntaram os fogos. Os animais doidos, tanto barulho, janela aberta, eu a olhar para a televisão a tentar perceber se aquele contagem era real ou de um anúncio qualquer. Não foi, portanto, com pompa ou circunstância que vinte-vinte-e-um chegou na minha vida. Depois das passas e um gole de espumante, fui-me deitar que eu gosto mesmo é da primeira manhã do ano para apanhar ar. Pudesse, tinha passado a dormir.
Essa história inusitada que te aconteceu lembra-me que, de certa forma, não ir tantas vezes ao mundo de fora, onde os seres humanos, por norma, socializam, tem-me tirado enredos. Não é que não veja pedaços de mau caminho em tudo, que os meus olhos são de lince e as minhas mãos de preguiça velha pendurada numa árvore cruzada de caracol e lesma, por isso, elas saem tão pouco cá para fora. E sim, não a percas, que ela pode ser-te útil um dia destes quando te vires enleada em personagens e precises de um Gilberto e uma cidadezinha pernambucana para animar as hostes.
Em tantos anos, talvez até mais nos últimos, histórias macacas, como por aqui se costuma dizer, tenho aos molhos. Desde que comecei neste trabalho onde estou, há seis anos, que a deslocação é feita na minha própria viatura. Salvo aqueles dias em que preciso de mundo e, nos tempos em que não eramos (tão) perigosos uns para os outros, metia-me, à la Inês Attenborough, na selva do metropolitano. Um desses dias, em que decidi dar descanso ao carro, fiz a minha caminhada até à estação, uns bons 15 minutos, comprei o bilhete no átrio, passei na máquina para dar a validação. Começo a descer as escadas e era para mais de um milhão de outras pessoas no apeadeiro. Tinha havido um qui pro quo e era coisa para demorar mais de 30 minutos. Eu ando sempre no limite, pelo que ia chegar atrasada. Só me ocorria a maravilhosa frase: Eu nunca ando de metro. Outra caminhada de 15 minutos, a espera por um autocarro e uma viagem turística por Lisboa e seus arredores. Estava mais excitada para contar o que me acontecera do que por ir chegar atrasada.
Outra muito boa que me aconteceu e me rendeu umas boas gargalhadas envolve telefonemas. Estava eu descansada às compras, ligam-me: Estou, Inês Henriques? Sim. Daqui fala a Ana (nome falso, para proteger a pessoa e a minha memória por já não se lembrar do nome dela), da TV Desporto (nome falso para proteger a identidade do canal) conhecemo-nos quando estiveste cá. Ah, sim (puxa pela memória, Maria Inês, quem é ela? Não me lembro de me ter cruzado com nenhuma mulher naquele dia. Sim, eu estivera naquele canal). Estou a ligar para te convidar a estar presente no painel do Dia da Mulher. Tlim tlim tlim, soa a campainha interior. Eu acho que não sou a Inês Henriques com quem queres falar. Silêncio. Queres falar com a Inês Henriques da marcha? Sim! Ai, desculpa, deram-me o teu número. Não faz mal, boa sorte. Escrevi isto no Facebook e recebi um comentário e convite da Inês Henriques. Às vezes vejo coisas delas e penso: Mas eu não escrevi isto. Depois vejo que é Ines Henriques sem acento e faço gosto.
Das histórias que dão enredo, a mais bonita aconteceu-me num 31 de dezembro, ano de 2018, quando as filas não tinham distanciamento obrigatório e me incomodava. Ali, naquele momento, foi incómodo, depois mágico, um encontro que só podia ter sido entre mim e ele, porque só eu saberia o que fazer com aquilo. (Ui, sua presunçosa!)
Dá-me licença? Desviei-me. Queria ficar atrás de si na fila. Pois, isto estava a estorvar. Há quem comece o ano a beber, eu começo a ler. Sorrio, bicho do mato, apressada, como sempre. Hoje perdi o meu cão. Ele não estava cá, estava na Alemanha, com a minha mulher. Escrevi um conto sobre ele, O Cão Sonhador, acabei por ter de o publicar hoje. Levo o Saramago, somos da mesma geração, conversamos muito. Não atenua a perda, mas faz-me companhia. Ler é importante. As pessoas vão lendo o conto e partilham, faz-me bem. É importante as pessoas comunicarem. Pousei os livros sobre o balcão, para que em poucos minutos fossem meus. Frida Kahlo, grande mulher. Sim, mas estes não são para mim. Em Portugal também houve uma grande mulher, Leonor Pimentel, foi a primeira mulher fundadora de um jornal, trocava cartas com Voltaire, foi morta em Nápoles, pela Inquisição, acusada de traição, porque o marido dizia que eram cartas românticas que trocava com o Voltaire. Nunca lhe foi dada a devida importância. Um bom ano para si. E sai. Lembro-me que querias saber quem era a Leonor Pimentel. Está aqui uma pequena meta para este ano, para o qual, ainda, não tracei nenhuma grande meta. Vou indo.
Ficava aqui agora a desfiar todas as situações que acho dignas de romance. Tenho um pouco de saudades de ver os outros, observar, que a minha imaginação não é lá essas coisas. Vivo do real, para gerar fetos. Agradeço ao cosmos ter-me dados olhos de lince. Já estas mão de preguiça…
Que a gente escreva muito em vinte-vinte-e-um, entre nós, fora de nós, junto ou misturado. São meus desejos. E saudinha da boa, que essa está em extinção nesses anos em que o mundo purga e avança, como bola pouco colorida nas mãos de gente insana (verso alterado do poema Pedra Filosofal, coisa mais linda).
Beijo beijo,
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.
Você também pode gostar
Continue lendo
