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PodCartas #23 – Amar e mudar as coisas

Escrito por em 05/01/2021

 
Rio de Janeiro, 04 de janeiro de 2021

Inês, querida

Sumi. Por uns dias, mas sumi. Às vezes acontece, pelos mais diversos motivos. No meu caso, foi pelo meu estado assoberbado ter chegado a um certo limite que não me deixou dar conta de tudo, me fazendo ter de cuidar das urgências. E às vezes os afetos se afogam nas urgências das coisas práticas, dos prazos, cronogramas, burocracias… Sofremos pelos afetos, pelas nossas faltas com eles, e damos nosso jeito de puxa-los à superfície, emergindo-os, tirando-lhes as águas dos pulmões, trazendo-os de volta à vida para que continuemos juntos a nossa caminhada. E assim, volto pra você, pras nossas cartas, pra essa nossa convivência tão distante e tão real nesse 2021 que se inicia. E eu mal senti a passagem. Por mim, pela minha necessidade, poderia ter sido adiado, uma semaninha ou uns dez dias, para que eu pudesse me organizar melhor para as festas ou descansos de final de ano. Mas nada… foi tudo atropelado mesmo.

Mas não reclamo, os afetos também residem no trabalho, ou deveriam residir, bem melhor é quando o fazem. E já cá estou com uma boa história, destas que você gosta, pois em meio a tantas coisas ainda me aconteceu de tocar o telefone com um número de São Paulo: era um captador de recursos me dizendo que um cliente dele estava interessado num projeto meu aprovado na lei federal de incentivo à cultura. Tomei um susto. Tão acostumada a suar um bocado para realizar os meus projetos, como você bem o sabe, fui logo acomodando mais tempo na falta de tempo na qual eu já estava imersa para dar meu jeito de criar as devidas condições para receber este presente que me era oferecido de modo tão inédito e surpreendente.

Entrei no sistema do antigo Ministério e agora apenas uma reles e sabotada até onde se pode sabotar uma secretaria especial de cultura, assim mesmo, com letras minúsculas, mas enfim, no sistema o projeto submetido em 2018 ainda estava ativo, só faltava checar a sua conta de captação no Banco do Brasil. Foi então que vi que esta continuava na agência de uma cidadezinha no interior de Pernambuco. Oxente. Como assim? Em 2018, logo que o projeto foi aprovado, por engano o então ainda  – e já a duras penas – Ministério abriu a conta nesta cidade, o que chamou a atenção do gerente do Banco que muito gentilmente entrou em contato comigo. Pra encurtar, entrei em contato com o setor responsável no Ministério solicitando a transferência da minha conta para o Rio, cumprindo, para isso, e à risca, todos os trâmites que me foram orientados, e fiquei tranquila. Mas eis que lá está a mesma conta no sistema, e, não sei se pela COVID ou se pelo atual desgoverno – possivelmente pelos dois – não conseguimos mais falar diretamente com as agências, mas apenas com umas centrais de atendimento que para o meu caso pouco serviam. Eu precisava falar com a agência do interior de Pernambuco, e de preferência com o mesmo gerente.

Tenho vinte e sete anos de Rio de Janeiro, mas algo dentro de mim ainda respira, sente, pensa e vive como a índia de pés descalços que eu era na sul da Bahia. E que maravilha é isso… Entrei no Google pra saber mais da dita cidade, descobrindo que esta possui apenas trinta e cinco mil habitantes, o que me fez imediatamente saber, com a mais absoluta certeza, que num sitio desses o gerente do Banco do Brasil é uma pessoa conhecida, eu diria que até com uma certa proeminência em seu lugar na sociedade local. Continuando, fui ao mapa, chegando à rua e à agência que, como eu já previa, está alocada numa casa. Passeei pela rua, observando os arredores, o que havia de mais próximo. Uma biblioteca pública, alguns comércios, e… muito próximo, um cartório que ainda me fazia o favor de ter os seus números de telefone pintados em sua fachada. Na minha agenda de papel resgatada de 2018, encontrei o evento e algumas anotações, porém deste gerente tinha anotado apenas o nome: Gilberto. Tracei meu plano e fui dormir e, no dia seguinte, logo à primeira hora das ditas comerciais, telefonei para o cartório. Um homem atendeu.

“Bom dia, falo do Rio de Janeiro, e tenho uma conta no Banco do Brasil daí, e estou precisando muito falar com o gerente. Você sabe me dizer se ainda é o senhor Gilberto?”

“Sim, é o Gilberto ainda.”

“Te peço desculpas pelo incômodo, mas estou mesmo precisando muito falar com ele. Será que você poderia ir ao banco dar um recado a ele?”

“Olha, ao banco não posso ir, mas te dou o celular dele. Anote aí…”

Liguei para o Gilberto, que estava com suspeita de COVID em casa, mas se lembrou do meu caso e me passou para o outro gerente que estava na agência, e com este vi que em 2018 o Ministério, que já andava capenga e parecendo adivinhar o seu futuro próximo de secretaria especial desprestigiada e sabotada, executou pela metade o serviço de transferência da agência referente ao meu projeto, apenas cancelando a minha conta na cidade equivocada e sem ter aberto uma nova conta conforme era esperado. E a agora secretaria especial, outrora um Ministério mais que ativo e ciente de ser o mês de dezembro o de maior movimento e corrido para boa parte dos produtores culturais, trabalhando conosco em parceria, não raro até o último dia do ano, esta secretaria não tinha ninguém para me atender e resolver a minha questão, fazendo pela metade o meu pequeno milagre de um captador batendo-me à porta com um cliente em mãos, e ao final não realizado. Não posso negar o travo que disto me ficou a passear pela boca. Do meu pequeno milagre, em princípio, ficou apenas uma boa história para contar, dessas que uma escritora tagarela adora, mas que, claro, preferia um final mais feliz. O jeito foi apaziguar esta agonia com um misto de revolta que me ficou no peito, diluindo-a com espumante gaúcho, um espumante feliz com o nome de “Poesia dos Pampas” que tomei com largos goles e em diversas taças para afogar esta mágoa que não quero trazer de volta à superfície e reanima-la.

Então, sábado, antes de ontem, choveu um bocado, com direito a alagamentos, e o que fiz foi me aconchegar na rede com o “Meus Desacontecimentos”, um livro da Eliane Brum, que li numa tacada só. É um livro com relatos pessoais, falando de desacontecimentos mais de sua infância e adolescência, que de algum modo a marcaram e tiveram algum papel fundamental nos meandros internos que ela acabou por percorrer em sua construção como pessoa e como mulher, muitos destes meandros trilhados mais pelas dores, boa parte delas recônditas, que pelos gozos. Como, no fundo, ocorre com todos nós, todos nós tão cheios de desacontecimentos.

E te digo aqui que um grande desacontecimento meu foi eu ter sido arrancada do meu paraíso, da terra que parece ter sido o único canto do mundo que senti como meu. Cada grão de areia, cada matiz das cores do mar, cada gota de rio… Cada coqueiro, cada falésia, cada rosto conhecido ou desconhecido andando pela rua. Cada nascer de lua e cada por de sol. Tudo me pertencia, ou talvez, e o mais provável, fosse eu quem de fato pertencesse, tão plena e integrada. Misturada. Amalgamada. Tentei por tanto tempo voltar para lá que o tempo passou e o paraíso mudou. Se capengou. Foi violado, e de vários modos usurpados. Ainda está lá, sem mais estar. E assim é o mundo. E assim é a vida. E compreender isto não diminui esta minha orfandade, apenas me faz debruçar sobre minha janela deste apartamento de frente para a mata no Rio de Janeiro, e vislumbrando as orquídeas incrustadas nas palmeirinhas do jardim do meu prédio, me sentir como elas: com as raízes para o ar, florescendo pelas superfícies sem conseguir enfiar-se pela terra e ali fincar-se como se fosse este um gesto eterno. Digo também que possivelmente tal separação estava escrita, era necessária para o cumprimento das missões que sinto, penso ou deliro que tenho. Vai saber… E vou seguindo ora orquídea, ora índia ainda atordoada com o asfalto, as buzinas, os arranha-céus, e me apavorando ao entrar num elevador que suba muito alto, sem condições psicológicas de fazê-lo sozinha.

E aqui estou grata ao homem do cartório, ao Gilberto, à pequena cidade pernambucana que me lembraram dos lugares que seguem com suas próprias lógicas e códigos, que seguem com suas simplicidades, com suas gentilezas, e alheias ao frio pragmatismo que tantas vezes festejamos nas grandes cidades. Sou grata por terem, de algum modo, me transportado, descalça a perambular folgada e despreocupada pela Porto Seguro que resiste em cada fibra minha. Sou grata por terem me lembrado de mim. Sou grata ao captador e ao cliente que sequer conheci. O projeto perdido ficou como um desacontecimento entre tantos ditados por este desgoverno inacreditável que só espero que passe o quanto antes.

E hoje, primeira segunda-feira do ano, acordei cheia de trabalho, mas me deixei passar uma boa hora da manhã ouvindo Belchior a toda altura, como se fosse sábado. Cantei alto e desafinado que amar e mudar as coisas me interessa mais. E foi o que fiz, mudei um bocado a cara desta segunda-feira para que o ano, em meio a esse caos no qual ainda nos arrastamos, ainda assim tenha dias que subvertam lógicas e códigos e sejam gentis. Entendi como uma gentileza oferecer Belchior aos meus vizinhos. E espero, com todo o meu coração, que eles tenham entendido o mesmo.

Feliz Ano Novo, minha querida. Que continuemos juntas, mesmo que de vez em quando uma de nós precise por uns dias sumir. O importante é voltar.

Grande beijo,

Bárbara

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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