Lisboa, 23 de dezembro de 2020
Oi, Dona Bárbara,
E, assim, chegamos ao Natal. Exaustos, exauridos, excruciados de um ano que nem nos nossos piores pesadelos pensávamos possível. Estamos vivas. Feliz Natal, minha baiana cansada, é hora do entupimento comensal! Pensa que parte dessa extenuação foi por um bem maior e pela sua paixão pelas letras. A outra parte é covidiana. Começo por te dizer que, mesmo a meio gás, com um olho aberto e outro fechado, achei a tua carta deliciosa…e assustadora, pelo déjà vu. Já lá vou. As tuas cartas têm sempre cadência, mesmo estando em piloto automático, talvez porque te está no sangue, no suor e lágrimas, as palavras encaixam bem e as histórias são sempre hilárias (ou tristes, também, já aconteceu). Em relação ao déjà vu, tem a ver com o nosso Ethan. Menina, não faz nem um mês…bom, se calhar faz, mas tudo bem, não é relevante para o caso, recebi uma mensagem de alguém que não vejo há anos, mas que nos últimos tempos tem se comunicado comigo por essa via, dizendo que estava a ver um filme giro com o nosso Ethan – o que me leva a crer que o moço, sem o saber, é Jesus e é de todos – e que se não vi tinha de ver. Juliet, naked. Ora que, eu já tinha visto o nosso Ethan e o filme, uma vez, e, embora goste de uma comedizinha romântica, que gosto, aquela não me levará a ver segunda vez. E é curioso, também, que em Londres, em idos anos que já nem me lembro, comprei este mesmo livro em inglês por ter no título Juliet, meu alter-ego que encarno na rede mais criativa deste século, o Instagram, nome do qual me apropriei quando em 2000 e troca o passo, um amigo me disse que esta mesma persona que se referiu ao Ethan como nosso era como um Romeu para mim. Qualquer coisa aqui se toca e assusta-me um bocado. Já não bastava carregar o nome de batismo daquela que foi Rainha depois de morta, apoderava-me, agora, para os tempos livres, da mais trágica personagem feminina da história da literatura. Eu, aquela que já teve milhares de histórias de amor, dramáticas quase todas, mas que, no fundo, acredita pouco nisso. Este também é o ano propício a coisas esquisitas, por isso, por momentos, considerei que o universo podia estar a indicar-me um caminho. Eu, como teimosa competente que sou, vou seguir pelo caminho menos viajado (citação livre), já dizia o Robert Frost e Robin Williams o declamava no Clube dos Poetas Mortos, filme que faz parte do quarteto da minha vida e que tem quem como estrela? O nosso Ethan. Tem também a personagem que mais me encanta, Nuwanda. Uma pessoa tem queda para os desvairados quer na ficção, quer na vida real. Juntando aos Before, esse é um filme que sei grande parte dos diálogos, dos tiques, da imensa cena da gruta e o seu saxofone, choro sempre no fim. Sempre. São eles que me levam a viajar quando não posso sair do lugar ou quando preciso de conforto. Podes juntar aí também tudo o que seja comédia romântica com a Sandra Bullock – quando voltar quero vir de Sandra Bullock -, o Pretty Woman, os Friends e as minhas amadas, companheironas do primeiro confinamento e das mudanças todas que tive de fazer a meio do ano, a dupla com os diálogos mais rápidos da história dos diálogos supersónicos, Gilmore Girls. Aqui, tudo o que não parece possível seria o mais fácil de atingirmos: o sentido de comunidade, olhar a vida sempre pelo lado positivo, mesmo quando não é possível. E todas essas que eu falei agora, incrivelmente, não têm o omnipotente Ethan. E não me lembro de ver o Great Expectations, mas, tal como A Grande Beleza, vai ficar na lista, talvez avance no final do ano. Nos dias do Natal vou aproveitar para me esbaldar nos filmes brasileiros que o FESTin disponibilizou online. A plataforma é de acesso gratuito em países de Língua Portuguesa, esqueci-me de te dizer. Estava lá Babenco, acho que o filme mais bonito e poderoso que vi este ano. Já te disse, mas volto a dizer, vai ver, merece seus olhos. O FESTin é o festival que mais gosto aqui em Lisboa, é ele que me traz o Brasil. O ritual de ir ao São Jorge é algo que me deixa tão, mas tão feliz. Por norma, vou na condição de jornalista, por isso, olho os filmes com o dobro da atenção, exercito o meu cérebro para mais do que simples contemplação.
Essa carta vai chegar antes da Consoada e, espero, seja um presente que te alegre pelas baboseiras nela escritas. Temos todo um 2021 para trocar pensamentos profundos, realizações, novas dores, amores, mais cinema, mais literatura. Por falar em literatura, estou com o Hugo Mãe e a sua A Desumanização. Nesse campo, ele não fica embebido em mim. É tudo tão onírico e fabuloso e poético que a história, para mim, se perde. É de mais. Não sei o que o distingue do realismo mágico ou até de um livro que li este ano e que me prendeu, Em açúcar de melancia, todo ele a promover o alternativo, só sei que me está a ser penoso. Mais uma vez, não o levo avante. Mas continuo a ser fã da pessoa Valter Hugo Mãe.
Agora sim, Feliz Natal, minha amiga. Sei que vai ser um dia diferente para quase toda a Humanidade e é neste ano que a máxima que pregamos todos os outros dias deverá fazer-se valer: Natal é quando um Homem quiser. Imbuída do espírito da época, que nenhuma vírus leva, fui ouvindo a Celine. Admito, essa versão encanta-me e serena-me
Beijo Beijo! Feliz Natau
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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