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PodCartas #21 – Leveza

Escrito por em 21/12/2020

Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2020

Inês, querida

Te escrevo na mais absoluta exaustão neste domingo de uma semana que se inicia sem que eu consiga ter a sensação de a anterior estar, de fato,  terminada. E não está. Apenas vou seguindo entre tarefas que se acumulam, nesta correria que não é raro nos envolver nisto que chamamos de final de ano, e cá estamos, com um Natal quase à boca, e eu com tantas e tantas coisas ainda por fazer. Uma exaustão que tem muito de bom, com algumas doses de chateação. Mas ainda assim exaustão, e te escrevo meio que no piloto automático, parando, semicerrando os olhos que pesam, tomando um gole d´água, e voltando às letras. Meu corpo e creio que minha alma também só querem agora dormir, simplesmente apagar por algumas horas para depois continuar. Nem uma ligada na televisão, nada. Apenas desligar. Mas ainda assim paro para uma prosa contigo.

Ontem, após 12 horas quase ininterruptas de trabalho, já passada das onze da noite, liguei a televisão para mudar o rumo da prosa entre os neurônios, e tive a sorte de estar passando um filminho daqueles que são ótimos para quando simplesmente precisamos de uma distração. Não sei se contigo é igual, mas muitas vezes me ajuda muito, quando estou cansada ou apenas precisando estancar um pouco o turbilhão dentro da cabeça, assistir a um filme que já vi antes, que gostei, que tem sua graça, e que seja leve. Como ajuda… E ontem tive a sorte de estar passando Juliet, nua e crua, com o nosso querido Ethan Hawke, uma história despretensiosa do encontro de um ex-roqueiro dos Estados Unidos (nosso Ethan) que se encontra num pleno e longo ostracismo, com uma inglesa do interior que está envolta nas mais diversas crises pessoais. Comédia romântica, podemos dizer, mas com um bocado de tutano. Foi perfeito.

E… sobre nosso Ethan, claro que sei da sua devoção absoluta pelos Before, mas me peguei lembrando de uma história mais antiga minha com ele, dessas que nos colocam a rir sozinhas. Nos anos 90, não sei se você lembra, ele estrelou, com Gwyneth Paltrow, uma versão moderna de Great Expectations passada em Nova York. E eu ali, no início dos meus vinte anos, ainda em transição, nesse espaço nebuloso no qual flutuamos entre os resquícios da adolescência e o início da vida adulta, todas as vezes que algum homem me causava algum dissabor amoroso, lá ia eu a uma locadora buscar um VHS de Great Expectations e me deliciar, buscando inspiração em Gwyneth, absoluta, fazendo o pobre Ethan de gato e sapato ao longo de todo o filme. Eu delirava, aplaudia e de algum modo ver tudo aquilo me fazia sentir com a alma lavada. Até que um dia Fabiana, ahhhhhh Fabiana, aquela amiga que me conhece como creio que ninguém mais no mundo conheça, ao me ver em frente à televisão sabe-se lá já por qual vez, na esperança de aprender algo com Gwyneth, sim esta Fabiana perdeu a paciência e me disse: “Olha, deixa eu te explicar uma coisa, você é ele, você não é ela. Você nunca será ela, entendeu?”. Me lembro da cena, da disposição dos móveis na sala do apartamento que então dividíamos em Niterói, de como a luz incidia, e de mim deitada na rede, dividida entre a tela na qual o filme corria alheio ao choque de realidade que me era jogado à cara, e a figura de Fabiana, brava, com as mãos na cintura, me encarando com uns olhos fundos e ainda mais bravos que toda ela ali parecia. Suspirei, e meio que como um cão com o rabo entre as pernas, terminei o filme e não me lembro de tê-lo buscado novamente em alguma locadora, assumindo, pelo menos ali, a minha condição de abestalhada. E ontem, vendo Juliet, nua e crua com um Ethan Hawke já tão amadurecido em sua imagem, não pude deixar de lembra-lo em Great Expectations e também de mim, daquela Bárbara que o assistia e tinha de reconhecer-se irremediavelmente mais no personagem do qual ela queria se distanciar, e não pude deixar também de me perguntar o quanto mudei – ou não – desde então. Enfim, questões…

Falando em filmes que bem distraem, houve um outro, argentino e bem mais recente, chamado A sorte em suas mãos, com Jorge Drexler largando um pouco o violão e se aventurando como ator. Eu tinha o tinha visto aqui no Festival do Rio, em 2012, e depois houve sua estreia nas salas de cinema em 2013, logo após a morte de meu pai. Na época eu tinha um compromisso quase que religioso comigo mesma de ir ao cinema pelo menos uma vez por semana. Morando em Botafogo, o bairro com mais salas de projeção do Rio de Janeiro, esta acabava sendo uma tarefa fácil, e após mais de um ano tendo de encarar a média de um CTI por mês com meu pai, uma verdadeira luta que culminou num último, e longo, e doloroso, e inesperado mês inteiro de internação, com a alma em carne viva, eu precisava de tudo, menos de ir ao cinema ver qualquer coisa pesada ou que me deprimisse. Por precaução, não me arrisquei, e cumpri à risca meu compromisso indo todas as semanas ver o A sorte em suas mãos garantindo ao mesmo tempo me distrair com uma história dessas trazem leveza ao espírito, e a bela visão de Jorge Drexler, enorme, na grande tela. Nada mal… posso dizer que isto ali, e no meu então estado, me ajudou um bom bocado.

E olha que engraçado, agora neste ano, em plena pandemia, a distribuidora do La suerte en tus manos fez uma grande promoção de seus títulos, e hoje o tenho aqui comigo, como um ícone dos refrigérios necessários que nos damos quando o corpo, a mente ou o coração nos pede. E te escrevo agora ouvindo Drexler, com sua imagem, também mais madura e com o violão ao colo, estampada na televisão. E sim, continua uma bela visão.

E é isto minha amiga, te escrevo exausta, e já na contagem regressiva para uma segunda-feira que será bem cheia, de uma semana curta que terminará antes, na quinta, véspera de um Natal, para o qual tenho árvore decorada e iluminada, presépio montado, um belo e colorido pisca-pisca tomando toda a minha janela, mas que não tenho a mínima ideia do que vou fazer por conta da pandemia que segue me impedindo de estar com minha mãe e minha avó. Um Natal sobre o qual ainda não consegui pensar. E te escrevo hoje algo leve, e leve também é a música que te deixo deste uruguaio fantástico que deixa qualquer tela com sua imagem algo bom de se olhar.

Grande beijo,

Bárbara   

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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