PodCartas #20 – O ano novo e o amor antigo
Escrito por Inês Henriques em 10/12/2020
Lisboa, 09 de dezembro
Oi, dona Bárbara,
Moça, que carta danada de bonita. Não é que as outras não fossem, são sempre, tu sabes, mas essa contava histórias bonitas e deu ao meu sentido de inutilidade, que tenho noção, não me pertence, mas que me tem invadido e que a troca das nossas cartas atenua e muito, alguma brandura. Mas, se é belo, não é inútil, porque transforma. Ninguém fica indiferente a algo que lhe desperta beleza. Depois há o inútil da roda do rato, que é esse em que vivo em certas horas do dia e que não faz parte do meu ser. Muitos dos grandes das letras, em que primeiramente me ocorre o Pessoa, também fazia outra coisa para sobreviver. Isso conforta-me a alma. A tua sugestão de filme, A Grande Beleza, já está na lista para ser visto. Lembro-me que quando saiu quis muito ir ver, mas, como já percebeste, não aconteceu.
Gosto de saber que és uma pessoa de afeto. Muito mundo diz que um abraço é bem mais intimo do que um beijo e tendo a concordar. No mundo atual, massificou-se o cumprimento de uma maneira que me desagrada. Principalmente para nós, mulheres, para quem ficou estipulado que o beijo era o cumprimento oficial. Desejo, e da minha parte tentarei manter, o cumprimento no bom dia, boa tarde, boa noite, como estás?. Lá está, coisas positivas desse vírus doido. Mesmo correndo o fundo do baú da memória de 38 anos, não me lembro de viver correndo para um colo, salvo raríssimas vezes de dor mais profunda e desorientação. Ela pode estar a atraiçoar-me, mas não lembro. Gosto de estar com pessoas, com as minhas, mas o contacto carnal não me falta. No fundo, sou uma insensível, sem coração. Ah ah ah Não nego que não apertar as minhas pequenas é mais duro, mas uma delas também é muito parecida comigo. Beijos e abraços não é com ela. Agora, com o gato dono do meu coração, a história é contada de outra forma. Desde março, e com exceção dos meses de verão, que ando a levar com pelo de gato nariz adentro twenty four seven. Os meus interiores não têm covid, graças aos deuses, elfos e duendes, estão recheados de pelugem cinzenta e branca que irrompe desgovernada todo o santo diante quando ele abanca as fofuras em cima do meu peito, arranha o meu pescoço de tanto que se quer colar. Encho-o de beijos, abraços, ele, coitado, ali fica, nem se mexe, retribui os beijos, chamo-lhe zé bebé, zé bidé, zé, oh mor. Deixa-me varada quando decide ser gato de louça e sentar o rabo em cima dos livros que estão na mesa de cabeceira e os manda ao chão, com toda a sua delicadeza enquanto sacode a pulguita que se alojou naquele corpo fofo. Mia de manhã, quando me vê ao computador. Posso abancar no teu colo?, traduzo. Lá vem, elegantérrimo e dengoso, para o seu sofá predileto. O mais curioso nesta relação de amor é que eu nunca gostei de gatos e até hoje não sei porque me adotou. Não sou eu que lhe dou comida, nem quem lhe muda a areia. Nunca um ser demonstrou tanto amor por mim como ele, assim, sem medos. Ele conquistou tanto o meu bombeador, como ninguém, e tem sido a companhia mais boa nestes tempos. Seria eu relativamente feliz nesta pandemia sem ele? Não saberei, mas duvido. A ti, que eu acho que me entendes, posso dizer que parte da alma dele, se não toda, é de alguém para quem eu fui um amor desmesurado. É, amiga, não desvalorizemos as energias. Enquanto falo dele ele está ali, enroscado numa manta, ao pé de mim. E isto é o amor, natural. Ele é o ser mais feliz do mundo com essa pandemia e não digam que os gatos são todos ariscos, que não é verdade, ele sempre foi assim comigo, nem é uma questão de estar mais maduro e pacholas, não.
Já o que para mim não é natural é a alegria obrigatória em dias de celebração decididos por nós, humanos. Desde pequena que detesto o final do ano. Perguntas-me porquê e eu digo-te: será das poucas coisas em que vejo o copo meio vazio. Oba, mais um ano!, grita o povo enquanto bate panelas e vai à janela ver o resto do povo bater panelas, depois de já ter mandado para o bucho em erupção 300 kg de camarão, mais bolos, mais peru, mais vinho, queijo, presunto e tudo o que te lembrares que se pode comer [estou a viver uma relação difícil com a comida, mas isso poderá servir para outra história]. Eu vejo menos um ano. Até porque as minhas renovações começam em setembro, num festejo interior e vibrante de planos para um novo ano. E depois tem outra, eu sou a menina do 1º de janeiro e como entendi a tua memória. Há muitos anos já que nesse dia, qualquer que seja o ano, saio de casa e caminho, cedo. Tento que seja uma manhã junto à água, mar ou rio, consoante o dia em que estou. Tenho uma boa memória, também, do cheiro a salada de frutas. Ananás e laranja. Ai, delicia! Por isso, faz mais sentido para mim dormir cedo e acordar cedo do que os festejos para os quais nunca me sinto preparada. Talvez lá pela década dos 20 isso tenha sido menos penoso, porque era uma desculpa para estar com amigos – essa é a década de nos virarmos para os amigos, eu acho – mas sempre me custou a falsa euforia. Bom, esse ano, mais uma vez, faço o tchim tchim, como as doze passas – que eu cá cumpro tudo o que é ritual, não vá o Diabo tecê-las – dou um passo em frente com o direito, tenho dinheiro no bolso – ou o Multibanco, caso a conta tenha uns euros – e uso calcinha azul no primeiro dia do ano. E fico-me por aí. Mas adoro o dia primeiro, como tu falas. A manhã de 2020 foi passada a ver When Harry meet Sally e foi por demais gostoso. Já viste? Óbvio que já deves ter visto, eu é que sou muito atrasada nos filmes. Aqui também é inverno, obriga a um recolher maior, aí é verão, cidade com praia. Talvez um dia, quem sabe, eu vá pular onda contigo e deixar flores para a deusa das águas. Porque eu sou festeira e galhofeira, adoro rir e chorar como consequência dessas risadas, só que sem que me obriguem. Desde que não tenha o dever de.
Nossa, hoje estava empolgada. Falar do Zé deixa-me assim, escritora em catadupa. Acabei a escrever uma carta com amor. Obrigada pela sua, foi ela que me impulsionou. Só espero que 2021 nos livre das coisas inúteis, nunca das belas.
Beijo beijo
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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