Rio de Janeiro, 07 de dezembro de 2020
Inês, querida
Se tem uma coisa de que preciso é de abraços. De recebê-los e de dá-los. Beijos também. Gosto de beijar. O toque para mim é uma necessidade, e ficar em casa para mim é menos penoso que viver esta vida asséptica e desprovida de calor. Estar com as pessoas sem poder lhes demonstrar o mínimo que seja de afeto físico, para mim é quase enlouquecedor. E vou me virando, sorrindo mesmo muitas vezes por baixo da máscara, “dando cotovelinhos” acompanhados de uma risada, um pequeno chiste para trazer um pouco de graça a toda esta frustração. Mas em tudo há o lugar para a transgressão, pois sempre há no mundo quem nos é impossível estar junto sem acariciar, e nem vou aqui tentar disfarçar dizendo que isto é algum dilema. É simples e inevitável: toca-se, acaricia-se, beija-se e pronto.
Ao contrário de ti, anseio pela vacina, menos pela roda da economia girando, e mais pelo calor dos afetos se alimentando. E enquanto ela não vem, bem… quem sofre um bocado é o Fiódor, com meus rompantes de beijos, abraços, apertos e cheiros. Aperto-o tanto que quase espremo o pobre gato. E enquanto ela não vem, come-se macarrão e toma-se vinho, iludindo umas gulas com outras, sem que possamos de fato nos enganar.
Ontem assisti novamente “A grande beleza”, e pra mim é sempre impossível não lembrar do dia que o vi no cinema: foi no primeiro dia de 2014. O Rio e o Brasil ainda ferviam na euforia da Copa e das Olimpíadas e nas mais auspiciosas promessas logo todas tão despedaçadas, e a festa de Ano Novo em Copacabana parecia ter sido ainda mais grandiosa. Quantos anos da minha vida me prometi ser a última vez que passaria a passagem de ano ali, e quando via lá estava eu de novo, ou por haver em minha casa alguma amiga ou amigo de fora hospedado, e que, claro, escolhia a nossa mais famosa festa para passar a meia noite, ou por facilidade, pois nos anos em que morei em Botafogo, era simplesmente ir a pé, cruzar o túnel, em meio à euforia e alegria de todos e tantos, e depois voltar para casa com a sensação de dever cumprido.
Dever… Essa coisa com a qual, como boa aquariana, não sou lá sempre muito boa. E vira e mexe transgrido.
De 2010 para 2011 haveria o show da Daniela Mercury no palco principal. Mas ninguém queria ir. Estavam todos envolvidos em alguma recepção, comilança ou bebelança. “Venha para cá, faremos isto e aquilo, depois veremos os fogos.” Tantos me disseram. E eu aqui, dentro de mim, querendo ver a Daniela Mercury. Fui. Fui só. E fui com o povo. Cheguei tranquilamente a um ponto logo abaixo do palco e me encantei comigo mesma, pela escolha que eu tinha feito. E aqui olho para a tela da televisão que mostra o título da música que faz parte da trilha sonora do A Grande Beleza e compreendo o meu estado daquela noite, que era o da mais absoluta beatitude. Eu simplesmente estava onde queria estar e me alegrei com a minha decisão. E dancei. E cantei. E fui plena. À meia noite, umas mulheres ao meu lado me ofereceram uma taça de espumante, e brindamos, e nos abraçamos e beijamos, felicitamos, desejamo-nos, de coração, todas as melhores coisas umas às outras, enquanto o Zeca Pagodinho entrava após o sempre belíssimo espetáculo de fogos, luzes e cores no céu. Ali vivi a beatitude de ser eu mesma, já uma mulher de trinta e poucos anos, sem me importar com estranhamento dos meus por preferir passar sozinha o tão esperado momento da contagem regressiva, que ao se findar traz em si a expectativa de transformar, num toque de mágica, todos os nossos sonhos e planos em realidade. Quanta bobagem… Melhor me acabar no show da Daniela e depois seguir sabendo que as delícias e as lutas da vida diária continuam as mesmas. E… verdade seja, dita, como minha narrativa já deixou claro, eu ali estava tudo menos só.
Então, de 2014 para 2015 foi a minha outra transgressão: eu estava em dias de escrita apaixonada de um livro que ainda não lancei. Imersa, em pleno delírio. Ali, Natal e Reveillon pareciam coisas completamente estranhas para mim. Tudo fora a história com a qual eu estava em cada fibra minha comprometida não era muito capaz de me estimular. No Natal, bem, no Natal, ainda cedi, mas o Ano Novo passei em delírio, numa nova beatitude, alheia à euforia com dia e hora marcados que nos obrigam a um compromisso repetitivo e anual. Pulamos sete ondas, jogamos flores para Yemanjá, comemos uvas, lentilhas e que mais der sorte ou trouxer amor ou dinheiro. De preferência os dois. E… passa um pouco… é a vez dos chineses fazerem o mesmo, em outro mês e dia, em outro canto do mundo, com outras cerimônias. E… passa mais um bom bocado… é a vez dos judeus, sob o comando da lua determinada comerem maçã e mel enquanto celebram o novo ano que chega. Não o nosso, tampouco o dos chineses. E no meio da Amazônia, ainda há povos que vivem desobrigados de tudo isto, talvez sem contar ano algum, mas ainda assim com seus próprios ritos e passagens.
Então chego de volta ao A Grande Beleza que assisti sozinha no cinema da Praia de Botafogo no dia primeiro de janeiro de 2014. E aquilo foi muito melhor que os fogos, luzes, cores, e festejos da noite anterior. Pois começar o que chamamos de novo ano com Paolo Sorrentino debochando da frivolidade e da inutilidade das coisas, ao mesmo tempo que, como um grande mestre que para mim ele já é, fazendo saltar a beleza que germina, brota e irrompe por entre as frestas que o inútil e o frívolo não são capazes de tapar, tomando a grande tela e toda a sala escura onde o filme era projetado, e, por extensão, tomando a mim. Fiquei ali tomada, beatificada, e… interrompo, calo por uns instantes esta minha narrativa para dividir isto contigo. Fecha os olhos, respira e vai. Isto sim foi um bom auspício, e, quando examino atentamente o período de tempo que chamamos de 2014, acho que ele foi bom, e tanto que ainda nele identifico um ponto cristalizado que posso batizar com o título do filme que acabei escolhendo para me beatificar enquanto o adentrava. Um ponto cristalizado desses que vemos nos filmes e nos livros emergirem, tomando o universo de alguns ditos velhos ou então loucos que, pelos mais diversos mecanismos internos, migram de corpo e alma para as suas subjetividades e ali ficam por entenderem ser este o único lugar que de fato habitamos.
E… minha amiga… não se iluda: somos todos uns inúteis. Somos a mais pura materialização da inutilidade, e apenas criamos coisas conceitualmente uteis no desespero de disfarçarmos a nossa inutilidade. Não servimos para nada, e vamos nos devorando uns aos outros e ao planeta que nos acolhe como gafanhotos insaciáveis, ao mesmo passo que tecemos teorias e mecanismos que nos convençam de que somos grande coisa. E se tudo é inútil, que pelo menos não seja frívolo. Creio que seja melhor e mais transcendente ver-se belo que ver-se utilizável, ou adequado ou aproveitável. E chamo de sermos belos o olhar para dentro tão fundo, ao ponto de chorar e dali sorrir, e dali brindar com desconhecidas e abraça-las como irmãs as quais desejamos o nosso melhor. E dali nos enlevarmos na sala escura do cinema. E dali escrevermos cartas ao som de violinos enquanto a chuva cai. E dali sermos, se não a beleza em si, a fresta por onde o belo possa emergir e se impor à frivolidade como uma fonte beatificante. É o que nos resta, enquanto seguimos em contagens regressivas para o próximo ano, esperando-o sempre mais auspicioso, sem sabermos exatamente para quê de fato nós e toda esta parafernália de coisas e coisas que continuamos inventando e inventando serve.
Grande beijo,
Bárbara
P.S. E que no que vamos chamar de 2021 chegue logo a bendita vacina.
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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