Lisboa, 3 de dezembro de 2020
Oi, Dona Bárbara,
Bem vinda! Foi tão bom saber que, de alguma forma, te recuperaste. É isso, minha amiga, temos de nos superar, há sempre alguém que precisa de nós. Se não for um outro, é o nosso eu.
Como sempre, a tua carta deu-me o que pensar e, aqui entre nós, que ninguém nos ouve, tenho um segredo para te contar: estou a ficar bastante ansiosa com a chegada da “cura” da covid. E no mau sentido. O pior, é que devo ser a única criatura nesse mundo que pensa que voltar ao “normal” vai ser um pesadelo. E sinto-me mal com isso. Como será o futuro? Eu faço parte daquele grupo privilegiado que trabalha em casa, sem grandes complicações, que só sai para o essencial, que não precisa de abraços constantes, nem de contacto com o outro a toda a hora, que procurava ter essa vida que o vírus veio obrigar o Mundo a ter. Claro que será maravilhoso voltar a ter as minhas pessoas nos intervalos, mas não é essa a primeira função dela. A primeira função é voltarmos ao trabalho, ao consumo, à rede que nos permite sobreviver. Essa sou eu e o meu egoísmo na mais pura das formas a falar.
Sinto-me mal com isso, exatamente pelo teu relato do homem da balsa. Quantas vezes já não pensei o mesmo que tu. Ei, pessoa, não transtornes o meu silêncio, por favor! O silêncio, além do tempo, era o bem que mais almejava na era pré-pandemia e são essas duas variáveis que, inevitavelmente, serão também bloqueadas quando a seringa e o seu liquido milagroso entrarem nos nossos corpos. Mas, voltando ao homem que vende coisas inúteis na balsa, porque precisa comer e está na base de uma sociedade que vive da compra e venda, tão só, isso me leva a outra variável sobre a qual tenho pensado bastante, principalmente, desde junho: a inutilidade. Não sei ser inútil.
Se em tempos não pandémicos já tínhamos uma perceção de que a maioria das coisas servia apenas para um prazer momentâneo, quando privados delas, é ainda mais notório. Um sinónimo de inútil é infrutuoso, que não dá fruto, que não gera. Estéril. É assim que me sinto, também, há uns tempos. Quis aliviar a pressão sobre o intelecto, pensar demora tempo e na urgência da comunidade global não há tempo para isso. Preciso viver com a segurança do dinheiro mensal e, ao mesmo tempo, sei que poderia ser melhor ativa, que me desperdiço em algo que não gera qualquer mais valia, que existe somente para empregar pessoas e dar a ilusão de vida. Não sentimos todos um pouco isto? Sou aquela otimista que vê beleza em todo o tipo de aprendizagem e isso tem-me salvado. Quase como se eu fosse atriz o tempo todo, sabes? Isso alivia. Tudo é laboratório. E porque, em boa verdade, ainda não me despojei totalmente do meu eu burguês, não saberia ser a artista, a criadora que vive à mingua ou muito aflita. Como disse o Gonçalo no episódio dele em Os Herdeiros de Saramago, quando há dor física, o ser humano deixa de pensar. A maioria de nós vive assim, não há espaço para todas as nossas capacidades, físicas e mentais, serem expostas. Ou nos resignamos, ou investimos fora de horas. Esta semana morreu Eduardo Lourenço e como epitáfio nos órgãos de comunicação social, esta frase dele: Não sei fazer outra coisa a não ser pensar. Fez-me todo o sentido. Não sou mecânica, preciso ligar os pontos. O meu pai sempre disse que era preguiçosa mental, que sou. E porquê? Porque quero muito alcançar o resultado, tenho urgência, e porque os outros têm pouca paciência com quem demora, porque pensar não se vê, é inútil para os de fora, é tempo desperdiçado. Porque se quer já. Eu achava que era preguiçosa, se calhar não, estava só com receio de demorar muito e isso tenho perdido ao longo dos anos. E, também, porque penso: que fim têm o que a minha cabeça produz? De que forma é útil ao próximo? Que transformações podem emanar daqui? Não são ágeis, articulados. Já e agora são as palavras da era moderna. Vou deixar a frase e Eduardo Lourenço a ecoar na minha cabeça. Não sei fazer outra coisa a não ser pensar. Não sei fazer outra coisa a não ser pensar. Obrigada, professor, por me permitir sonhar.
Ficou tudo um pouco confuso, não ficou? Parece uma manta de retalhos. Vou tentar desnovelar e trabalhar na eloquência.
Daqui te mando beijos vírus free.
Beijo beijo
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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