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PodCartas #17 – Carinho

Escrito por em 02/12/2020

 
Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 2020

Inês, querida

Recebi seu carinho, digo sua carta, num dia em que eu tinha de dar um pulo em Niterói para resolver algumas burocracias, e, como tudo tem mais de uma forma de ser visto, a santa burocracia, da qual é fácil e recorrente reclamarmos, em tempos pandêmicos acabou por me presentear com um passeio. Sim, pois esta é mais uma outra forma de vermos as coisas, e… neste caso,  me refiro à travessia Rio – Niterói. E como é bonita… e como, por mais que nos esqueçamos disto, é sim um passeio.

Sabendo disto, que a ida ao meu contador em Niterói se tornaria um passeio, guardei a sua carta para a barca. Mas nem tudo, ou quase nada, é sonho e romance.

Estava um dia quente, realmente quente, e quando cheguei à estação soube que as barcas, sob um enviesado e suspeito pretexto da covid, estão saindo apenas de hora em hora. A notícia real era a de que, em pleno aumento do número de casos da doença, haveria um ajuntamento considerável de pessoas, que, sem ar condicionado – também desligado por causa da covid, derreteriam juntas durante a espera. Era a primeira vez que eu usaria o transporte público desde março, e… estava morrendo de saudades.

Gosto de pegar barca, ônibus e metrô. Acho este ir e vir junto com tantas e tão diversas pessoas uma matéria prima viva e essencial para quem escreve. É mundo real, fora de nossas bolhas nos bancos de trás de carros que chamamos por aplicativo, nos quais nos deslocamos pela cidade, solitários entre janelas que mal nos permitem vislumbrar as cores reais das ruas, e sentirmos a vibração pulsante, quase palpável da cidade.

E olha que ótimo: ontem, também um dia quentíssimo, havia um movimento de greve entre motoristas das linhas do BRT. As pessoas estavam amargando as suas necessidades frustradas de chegarem em casa, ou ao trabalho, ou aos compromissos que fossem, quando um homem resolveu assumir o volante do ônibus que não saía e levar a si e à toda a gente ali aos seus destinos. Soltei uma imensa gargalhada quando vi a notícia pela televisão e, num gesto mais que espontâneo, aplaudi. Aplaudi muito esta dita transgressão, de um homem, de um cidadão que resolve se insurgir a este sistema que nos oprime a todos, e… claro… tão, tão, tão mais a uns que a outros. E não falo obviamente de uma insurreição aos motoristas em greve, que merecem toda a nossa solidariedade, mas ao sistema mais que conhecido, mapeado e antigo das máfias que controlam as empresas de ônibus no Rio de Janeiro.

Parece que o pobre homem foi preso. E como eu queria ter estado lá, não só para respirar junto esta lufada de ar fresco nesta vida tantas vezes asfixiante de gado confinado que levamos, sujeitados a darmos o leite, a carne e o couro diário aos que dão sempre um jeito de nos marcar a ferro e fogo. Sim, queria estar lá não apenas para respirar, mas para me solidarizar um algo mais que pela distância de uma tela sei lá de quantos K e com que tipo ou quantidade de megapixels. Queria estar ali, olho no olho, mão na mão, indo junto à delegacia, ao tribunal, ajudar a apaziguar a família aflita do homem detido, e dizendo à delegada ou ao juiz o quão cobertas de razão estavam a mãos que resolveram pegar no volante do ônibus que não saía.

Sabe, escrevendo assim, e lembrando que há quem ande lendo as nossas cartas, e estão aqui a dor no ciático e o sabonete de limão siciliano que não me deixam mentir, chego a desejar que este ousado motorista também nos leia e saiba que não está sozinho, e que mesmo que desse modo humilde e também pretensioso, esta sua façanha está ganhando algum registro que vá além da efemeridade das manchetes diárias dos jornais. Penso eu que ele merece mais alguns holofotes, recostar-se à poltrona do programa da Fátima Bernardes, por exemplo, e ali poder contar a epopeia diária dos trabalhadores desta cidade, ser incensado, recompensado em seu ato de rebeldia e coragem, e receber ao vivo os merecidos aplausos, mais que estes ocultos que da solidão da minha sala pandêmica lhe dirigi.

Mas voltando à barca, quando finalmente me recostei à sua poltrona e, já ansiosa, achei que iria me concentrar em sua carta, eis que entra um homem, um trabalhador, a me tirar a paz do passeio sonhado, praticamente aos berros, num anúncio de venda que parecia interminável de um suporte para celular. Me irritei. Me irritei muito. Queria exercer o meu direito ao silêncio, estar contigo, com essa minha imensa subjetividade, que a necessidade do homem que parecia nunca mais parar de berrar sobre todas as vantagens daquele específico suporte de celular estavam ali a invadir e sufocar. A contraposição infame da poesia com o arroz com feijão à mesa. Talvez de algum modo eu ali tivesse desejado inconscientemente as janelas fechadas do carro por aplicativo, e… irritada, e… praguejando cá dentro de mim por conta do meu sagrado direito ao silêncio, pensei no arroz com feijão à mesa do homem ao mesmo tempo que via o título da sua carta: “até quando seremos maus?”. Me senti má. Ali, me senti má. Me envergonhei. E aqui suspiro ao te escrever. Me senti má, e me desconfortei num desconforto muito mais além daquele do meu silêncio interrompido, do da minha carta não usufruída. O desconforte de me sentir má.

Calada e resignada, cheguei à Niterói, cumpri minhas burocracias, e depois inventei coisas para fazer enquanto esperava pelo absurdo horário da saída de hora em hora das barcas e… se nem tudo é sonho ou romance, tampouco tem de ser frustração e desilusão, e já esperando só poder contar com o anúncio de um novo vendedor, consegui me sentar à janela da embarcação que me levaria de volta, e ali ter com sua carta, e ao vê-la iniciar-se falando sobre o meu nome, imediatamente marejei, menos por mim, e mais por saber que meu painho o escolheu antes, durante a após a minha gestação de modo intransigente: “é menina, e é Bárbara”. Para ele não havia negociação naquela década de setenta quando ainda se sabia o sexo dos bebês no momento do nascimento. E assim sou: Bárbara.

Fiz a travessia a sós com suas palavras, feliz pelo passeio, vendo pela janela a Baía de Guanabara, tão grandiosa, tanto em sua poluição quanto em sua beleza. Me lembro que um dia me contaram do relato de uma senhora que, chegada ao Brasil ainda muito criança num navio, fugida com a família da Revolução Russa, ao navegar por esta Baía de Guanabara fora inesquecivelmente impactada pelo espetáculo de cores por ela até então desconhecidas. Imagine que lindeza. E… marejada, tirei uma foto pra ti, uma foto de Niterói, especificamente do campus da Universidade Federal Fluminense à beira mar. E que privilégio ali estudar. Um privilégio que já tive.

Espero que no seu retorno possamos juntas passear novamente por Niterói, sem a chuva e a pressa da outra vez. Espero que caminhemos por suas ruas como caminhamos pelo Rio, e que você possa novamente se apaixonar. Espero que possamos dar um mergulho nas águas de Itacoatiara, sabendo que o grande risco é o de você não querer mais voltar, o que não seria de se estranhar.

Vixe, falei um bocado. E, sim… hoje tem vinho, vela acesa, e um difusor com óleo essencial de laranja doce. E sim, hoje tem música cubana, do Buena Vista Social Club, aquele filme que exatamente no ano 2000 me encantou pela tela do cinema. Vi sozinha e depois levei minha mãe pra ver. Comprei imediatamente o CD. Eu tinha vinte e três aninhos. Pense…  Deixe pra lá, ou então esta carta se eternizará.

E sim, hoje tem dança pela sala enquanto Fiódor dorme, e hoje tem querida, este que você tanto merece. E hoje tem este grande beijo que agora lhe envio, pois, como eu disse: voltei, porque o jeito continua sendo este: voltar.

Além do grande beijo, receba meu carinho, este mesmo que você me enviou, que tento espalhar e que tanto me ajuda a continuar.

Fico te aguardando,

Bárbara

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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