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PodCartas #16 – Até quando seremos maus?

Escrito por em 27/11/2020

 
Lisboa, 26 de novembro de 2020,

Querida Bárbara,

Olha só como as coisas são. Os teus pais chamaram-te Bárbara, que é o oposto de querida. Bárbara, o feminino de bárbaro, nasceu para marcar aqueles que não falavam nem grego, nem latim, os estrangeiros, os rudes, os grosseiros, os não-civilizados. Os selvagens. Tudo aquilo que tu não és. Mas aí, vem o Brasil e muda tudo. Bárbara passa a ser tudo o que revela qualidades positivas. Bárbara, você é bárbara. E, assim, os teus pais não te poderiam ter chamado de nada mais do que de Bárbara. Sobre o querida, que os últimos acontecimentos te roubaram e que entendo perfeitamente, nunca uso porque aqui começou a ser usado de forma condescendente, e sarcástica até. Uso hoje para que te seja devolvido. Vai entrar pelos teus ouvidos e olhos e alojar-se de novo em ti. Guarda bem, para usares em caso de necessidade extrema.

A maldade, que pode manifestar-se em forma de brutalidade, como foi o caso, é um conceito em que tenho pensado muito nos últimos anos. Enquanto tu assistias a tudo isso por aí, eu lia Robert Arlt e o seu Os Sete Loucos. Vê isso:

“Como é possível que as pessoas não se tenham dado conta da extraordinária beleza que há neste acto…em queimar vivo um homem? E por não acreditar em Deus, já reparou, por não acreditar em Deus. É necessário, compreenda-me, é absolutamente necessário que uma religião sombria e enorme volte a inflamar o coração da Humanidade. Que todos se ajoelhem à passagem de um santo e que a oração do mais insignificante dos sacerdotes acenda um milagre no céu da tarde. Ah, se soubesse quantas vezes pensei eu nisto! E o que me alenta é saber que a civilização e a miséria do século desequilibraram muitos homens. Estes tresloucados que não encontram rumo na sociedade são forças perdidas”.

É muito difícil explicar esse livro, só lendo mesmo, mas diria, em traços gerais, que toca na possibilidade das várias facetas do Homem, traz à tona estes pontos de vista, sem julgamentos, falando como se fosse um diálogo sobre o que estás a pensar fazer para o jantar. A minha pergunta é: o que fazemos com a maldade? Porque ela existe. A Era em que vivemos é boa a varrer para debaixo do tapete o que afeta, o que nos pode fazer sofrer. Veja-se o caso do Brasil, afinal cheio de ódio recalcado. São resquícios de um século XX demasiado brutal e demasiado próximo temporalmente. Quisemos apagar, andar para a frente. Vivemos anos de positividade encapuzada. Não quero abdicar da alegria, de ver o lado positivo em tudo, quero que se olhe para o problema e se descubra a solução. Por mais tempo que leve. Tudo isso só choca porque já não era suposto sermos tão bárbaros. Como dizias, e bem, no outro dia, essa barbárie sempre existiu. O gozo de matar. Não acredito que quem mata assim não o faça com tenebroso prazer. Não perdemos o instinto matador, apenas o domesticamos com educação. Rousseau acha que não, que somos bons à nascença e é a vida em sociedade que nos transforma em criaturas más. Talvez pense o contrário, que há em nós esse instinto matador e malévolo, como meio de sobrevivência, que pode ou não ser aguçado consoante o circulo onde calhamos. Aquilo que fazemos com a nossa maldade é definido pela nossa comunidade e pela nossa educação. Eu considero-me uma pessoa educada, com a maldade bem domesticada, mas já dei por mim, cega, em atos menos abonatórios contra uma pessoa que esbanjava bondade. Questionei-me tantas vezes sobre como é que chegara ali, mas ela vinha, como um impulso, quase sobre-humano, e os olhos chispavam e a boca jorrava as minhas verdades. Sabia que a solução era afastar-me, porque estava infetada.

Continuo a acreditar que a nossa agressividade natural, mais violenta em algumas pessoas do que noutras, como qualquer outra característica, não deve ser escondida. Não podes ser tão agressivo, avisam. Claro que não podemos, mas não podemos abdicar disso totalmente, porque, bem usada, pode salvar-nos. Ela tem de ser canalizada todos os dias, porque ela é energia pura. Olha o boxe, por exemplo, é justíssimo. Quer dar uns socos na cara? Vai lá e dá, são duas pessoas legitimamente querendo dar e apanhar, com regras. Isso não chega? Façamos terapia. Falar é bom. Ter quem ajude a desenrolar novelos é bom. Depois, é pegar na agulha e fazer tricot. Bem sei que parece simplista, a nossa sociedade é mais complexa e demasiado grande, mas às vezes é bom ser simples, ao estilo Caeiro. Poderemos sempre nos alongar sobre o conceito da maldade, tentar inverte-lo o máximo de vezes possíveis, sempre sabendo que ele existe e que nunca vai deixar de existir. A maldade será sempre a consciência da prática do mal. Queria ser mais eloquente sobre o tema, mais filosófica. Não estou conseguindo. Parece que este tema anda a pairar sobre nós. O Gonçalo lançou a semana passada o novo romance, O Osso do Meio, que o próprio diz ser muito violento. Quero muito ir comprar e começar, mas custa-me ler sobre o mal e a violência nesta fase. Preciso me colorir na ficção.

Enquanto escrevia, fui ouvir Trio Jourban, um trio de irmãos palestinianos – palestino para ti – que tocam alaúde. Vêm de uma terra sempre em guerra e, no entanto, eles são só paz. Faz assim: põe a tocar, deita na rede e olha lá para fora, para a floresta e para os bichinhos que às vezes te visitam, bebe um café forte. Ah, e afaga o Fiódor, nada como afagar gato ronronando. Pessoas batalhadoras como tu precisam reerguer-se para ajudar. Não precisamos pensar na ajuda global, pensemos na ajuda ao que está ao nosso alcance.

Daqui te mando carinho. Usa, abusa e espalha.

Beijo beijo,

Inês

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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