Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2020
Inês
Recebi a sua última carta na sexta passada de manhã. Era feriado, 20 de novembro, aqui, Dia da Consciência Negra. Era feriado, e acordei um pouco mais lenta, e antes de me ater à sua correspondência, resolvi tomar meu café da manhã, mas desse modo pouco aconselhável às refeições, ajeitada no sofá e em frente à televisão. Não comi. Tampouco depois te dei atenção. O pão não desceu. Nada desceu. E aqui te escrevo ainda entalada, seca e asfixiada, com um não sei o quê, um misto de desesperos que sigo sem consegui sacudir de mim. Estão grudados tal como um cobertor grosso e pesado a me envolver a face, como num pesadelo, sem permitir que eu enxergue ou respire direito. Um tapume que me tira o ar para não me matar de frio, um frio na alma, a me gelar as entranhas ao mesmo passo que me paralisa. Sim, parece um pesadelo. Te escrevo aqui, mas de algum modo ainda estou ali, sentada no sofá, em frente à televisão, sem fôlego, com os olhos arregalados, e o coração nas mãos.
Vejo um homem deitado no chão e sendo surrado por outros dois homens. A quantidade de socos que recebe na cabeça ao mesmo tempo que todo ele, inteiro, é espancado, é de assustar. Socos raivosos, violentos, devastadores. Devastam dentro e fora da tela. Devastam o mundo. Me devastam. Sangue começa a manchar o chão em gotas grossas que começam a abundar. Círculos quentes, molhados, preenchidos e vermelhos sobre o assoalho. Perco o ar. O homem surrado se debate, tenta em vão reagir e lutar, grita por ajuda… Há um rosto esfregado, premido ao chão. Há um joelho, ou mais, sobre as costas imobilizadas. Há um corpo que tenta resistir, mas parece ceder, parece, e em muito pouco tempo, não mais aguentar. Há um corpo que parece morrer.
Há também uma mulher trajando um uniforme, camisa branca e calça azul, uma possível logomarca pequena, provavelmente a adornar o lado esquerdo, sobre o seio, uma roupa que certamente intenciona emprestar-lhe uma certa distinção, marcar sua posição. Esta mulher cerca e rodeia a cena, com um celular na mão, registrando a barbárie, sabe-se lá movida por qual pretensiosa ideia ou intento. Ela pode talvez, e provavelmente num gesto impedir, fazer parar, mas não, ela filma o homem rapidamente se extinguir, gravando o assassinato que de modo nu e cru nos é mostrado incontáveis vezes, e por dias, pela televisão.
Na primeira vez vi na íntegra, pega de surpresa, incrédula e apavorada. Estatelada. Na segunda vez já não, precisei desviar o olhar. Na terceira, na quarta e na quinta virei a cabeça para o chão, para a parede, para a mata além de janela, e na sexta vez, então simplesmente, e tal como uma criança, tapei o rosto com as mãos. Depois nem me recordo mais, apenas entendo que não consegui mais exercer o penoso e necessário papel de testemunha ocular dos cinco ou seis minutos de selvageria que levaram a vida de um homem que, retorcendo-se, sucumbiu sem chance ou qualquer ajuda para se salvar.
Era feriado. Dia da Consciência Negra. E negro é o homem que vejo morrer, de tão bruto modo que nem a mais besta fera mereceria. Era a noite anterior. Era Porto Alegre. Eram os seguranças contratados por um grande e mundialmente conhecido supermercado. Era a paralisia omissa dos que assistiram ao abate do João Alberto, ou Beto, inermes, talvez pagando o preço alto de se deixarem suspender entre o medo, a dúvida e a hesitação.
Me transporto para lá: grito, parto pra cima, empurro, fantasio… estou no sofá mas estou lá. Quero poder ter um jeito de fazer aquilo parar, mas estou no sofá. Choro. Não tem pão, não tem carta, não tem nem mais dia, não tem mais alegria. Não tem o “querida” que costumo e gosto de colocar logo após o seu nome antes de começar a contigo prosear. Não tem o grande beijo, carinhoso a encerrar a missiva na promessa de uma próxima. Não tem gentileza, é só vazio e estupefação.
Não tem nem as letras para apreender e escolhe-las, escrevendo-as como ideais, mais literárias ou poéticas para te narrar. E como ver poesia nesse corpo chutado, esmurrado e aviltado antes de sem vida esfriar sobre o chão? E eu tento, procuro formas que, se não mais belas, sejam ao menos mais apuradas pra te contar. Mas dentro de mim agora é só um oco silêncio, um não desejo, um repouso abandonado numa soturna estagnação. E olha que insisto, imprimindo pra ti neste papel umas palavras, atabalhoadas, que são escritas contrariadas, sem quererem existir nessas frases que me parecem dissonantes, que me parecem não servir para nada.
Só sei que na sexta feira, dia 20 de novembro, no dia da Consciência Negra, eu vi o negro João Alberto Silveira Freitas morrer em minutos e violentamente espancado no chão de um supermercado. E eu estou lá. Eu ainda estou lá, eu ainda estou lá… Eu não consegui voltar. Alguns dias passaram, e eu já fiz um bocado de coisas, preciso viver, preciso trabalhar, mas continuo sentada, em frente à TV, naquele sofá. Eu queria te responder. Mas me foge o verbo, e não consigo falar.
Te peço desculpas. Hoje não tem música. Hoje não tem vinho. Hoje não tem dança, nem nada bonito pra te contar.
Mas eu volto, porque o jeito é esse, é voltar.
Então é isso. Até a próxima.
Bárbara
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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