Lisboa, 19 de novembro de 2020
Oi, Dona Bárbara,
A tua carta me emocionou. E escrevo assim mesmo, me emocionou, porque o meu cérebro, meu comandante-chefe, está falando em português do Brasil na minha cabeça. Não pude não ser levada por essa incursão pelas serras e mares. Um dos meus maiores desgostos foi, no assalto, terem levado o meu telemóvel com os vídeos que fiz lá do alto da avioneta, com o Monte Pascoal ao fundo, aquele verde infinito, o mar bem em baixo. Nem foi o ténis, porque há sempre um sítio onde comprar, mas esses vídeos não. Eu, mulher da era da máquina de escrever e da pena, não fiz back up e deu nesse desgosto profundo. Sobrevoar essa costa baiana não teve preço, foi lindo por demais, vice! Já te contei que o piloto pôs a tocar Emílio Santiago e aquilo deu toda uma aura de filme à viagem. Tenho a certeza que me dividi em corpo e alma, fui espectadora da minha própria viagem. Essa terra tem o mágico poder de nos reconectarmos connosco. Ou então eu já estava numa fase de introversão e reclusão quando ai pisei. Tem sido esse estágio já de alguns anos que me tem permitido viver esse recolhimento obrigatório de uma forma tranquila – menina, os meus níveis de stress desceram a patamares infantis, só vistos, provavelmente, nos meus 3 ou 4 anos de idade. As minhas ideias estão mais vivas do que nunca. Sou uma pessoa de pessoas, mas gosto muito da minha companhia. Se eu fosse outra pessoa que não eu, seria minha amiga. Se fosse um homem, seria apaixonado por mim, mesmo até antes de me ter cruzado comigo. Tenho um amigo que muitas vezes me disse que eu falava muito sobre mim. Iria falar de quem? Ou melhor, talvez ache que sou interessante, preparei-me durante muitos anos para falar de mim, dos meus acontecimentos. Gosto de viajar sozinha para chegar e contar. Gosto de contar. Foi isso que me levou a ser jornalista. As minhas aventuras amorosas sempre foram extremamente interessantes de serem vividas porque eram, lá nos tempos idos da inconsequência, histórias mirabolantes e cheias de twists e coisas, que me faziam vibrar mesmo quando não estava com eles. Ai, garota, evolui muito entretanto. Para ter novas histórias para contar, isso vai implicar o mundo entrar de novo na bagunça, não estou preparada, confesso-te.
Tu falaste em montanhas e praia, eu falo-te de planície. Ias apaixonar-te pelo Alentejo. É a região do amadurecimento. Da quentura e do silêncio. Acho que a região, mais interior, será o equivalente ao teu sertão, árido. Não o sertão do Guimarães Rosa, mas do João Cabral de Melo Neto. Tem lá bons vinhos, sabias? Para mim são muito secos, cheios de corpo, fico sempre morrendo de sede depois de um copo. Não sou vinhateira, como já te disse. Lá não fazem chocolate, mas fazem queijo. O Alentejo, além de fazer essas coisas gostosas, faz bem. Chegamos numa fase, acredito, que o retorno à Natureza, ou pelo menos a vontade, é implacável. Talvez porque seja a fase da vida em que deveríamos estar formando novos seres, tanto mulheres como homens. Pode ser isso. Se a cidade não me tivesse presa, eu ia. Não sei fazer o quê, mas ia. A gente sabe o quê, né? Escrever, ora pois. E viver. Plantar batatas, couves, apanhar fruta, molhar os pés no rio, fazia trilhos (ou trilhas), abrir uma livraria, um cinema. Olha abrir um cinema como antigamente? Há tantas localidades que viram cinemas e teatros serem fechados. Tanta coisa para fazer poder ser feita e nós, a maioria, presos ou com medo do que nos poderá faltar com a mudança. E digo-te, esse tempo pandémico não vai servir para nada, o mundo humano voltará, em breve, ao seu estado natural. Com muita pena minha. E das galinhas.
Esperava, sou honesta, que a tua carta fosse recheada dos últimos acontecimentos. Lamento por ti, lamento pelo Rio. Mas nunca te esqueças que o pouco que lutamos pode não dar logo fruto, mas dará. Acredita. Pelo que fui vendo nos órgãos daí, ainda houve muitos sítios que elegeram pessoas fora da caixa – que ninguém se sinta ofendido com isso que escrevi, que não é para fica, é só uma constatação – trans, cadeirantes. Que houve uma rejeição ao bolsonarismo. Não gosto quando alguma coisa que não a competência é definidora da pessoa, como ter alguma deficiência, ser mulher, preto, amarelo, às pintas, careca, velho, novo, mas, nesta era, terá de ser assim. Espero que além dessa característica sejam competentes. O Brasil às vezes surpreende-me. Não esperava isso. Já me iria surpreender um, quanto mais vários. Concordas?
Esta carta vai chegar a ti num dia muito especial para mim. A minha afilhada mais velha faz 6 anos. Conhecia uma risquinha cor de rosa num pauzinho e aí está ela, cheia de luz, a minha lourinha, uma cabeça livre, um chacoalhar imenso lá dentro, como um dia escrevi. Queria estar mais vezes com ela, estamos separadas por 300 quilómetros (eu sei, 300 quilómetros aí é nada, aqui é muito. Distância é coisa relativa). Lembras-te da nossa conversa de almas, do amor que bate e a gente nem sabe de onde vem? É assim com a Lira.
Por aqui fico festejando interiormente. Tu, já sabes, precisando de um abraço epistolar, é só mandar carta.
Beijo beijo,
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.
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