Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2020
Inês, querida
Hoje tomo um rosé gelado para curar a ressaca de ontem. Não uma alcoólica, mas uma ressaca eleitoral. Não, o Rio não terá, pelo menos agora, a sua primeira prefeita. E isto é tudo o que eu estou disposta a falar sobre este meu desconsolo agora. Quero é beber um pouco nesta noite morna de segunda-feira e voltar. Voltar pra mim. Porque é assim: me deixo levar pelas paixões, pelas lutas, pelos ideais que me arrancam do meu centro, tomam minha energia e atenção, meio que me arrancam o coração… sofro, vibro, me entrego… mas há sempre o momento que, um tanto exaurida e com saudade, preciso voltar pra casa, pra esta minha casa que eu sou, preciso voltar pra mim.
E aqui estou, naquele movimento que você bem conhece, de tanto que já te enchi os ouvidos com isso, e saio flertando com delírios campestres. “Eu quero uma casa no campo, onde eu possa compor muitos rocks rurais, e tenha somente a certeza dos amigos do peito e nada mais…” Esta canção de Zé Rodrix imortalizada na voz de Elis Regina passa a me rondar o pensamento, colando-se aos meus neurônios, e assim fico por uns bons dias tal qual uma vitrola tocando um disco de uma só música. E deliro. Acordo, levanto, e tomo meu café da manhã em uma mesa com vista para as montanhas e toda uma Mata Atlântica serrana. Fiódor corre pelo gramado, feliz e liberto desta vida nova, reclusa e forçada num apartamento, que o coloca diariamente a reclamar. E sigo no delírio, pego a bicicleta e pedalo por paisagens tropicais, até uma cachoeira onde me banho. Volto pra casa, e ao som dos grilos sento pra escrever, pra trabalhar. Ora, na serra fluminense é cheia de possibilidades para que eu arranje um lugar “onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros, e nada mais.” Uma vida sem grandes desejos, no doce fruir de quem encontrou em si a própria e melhor morada.
Deliro, e planto. Ora, até acho graça. Sou tão boa em cuidar de crianças e bichos, que chega a ser estranha a minha completa falta de jeito com plantas. E gosto tanto delas… Quero cultivar algo. Pelo Brasil temos produzido excelentes azeites, temos melhorado a qualidade de nosso vinho, e aqui, no estado do Rio já temos uma vinícola que estou morrendo para ir visitar. Já pensou? Euzinha aqui produzindo vinhos? Até esvaziei agora a minha garrafa do rosé, um chileno orgânico, e bem honesto. Este ano, em janeiro, quando o mundo estava começando a virar de ponta cabeça, e por aqui ainda conseguíamos nos dar ao luxo de fingirmos que nada era ou seria conosco, fui visitar minha família na serra gaúcha e lá estive também para fazer algumas pesquisas para o livro que estou escrevendo. O engraçado é que, tal como uma personagem do livro, usei a desculpa de ir atrás de uns vinhos naturais, quando talvez, e inconfessavelmente, eu estava atrás de apenas estar feliz ali. E como fui feliz naqueles dias…
Tenho um primo querido, queridíssimo, e enólogo que se empolgou com minhas pesquisas e um dia chegou em casa carregado de uvas pinot noir para fazer uma experiência caseira e artesanal. Adorei! E não só acompanhei atentamente todo o processo, como dei uma de louca e resolvi reproduzir o que ali vi em casa, no Rio de Janeiro. Agora imagine, a sua amiga aqui, no avião, cuidando das uvas como se fossem pérolas não negras, mas arroxeadas. Aqui fiz umas armengagens – no melhor sentido do termo – e pus pra frente meu laboratório de vinificação. Lembro do meu grito de alegria ao ver as primeiras borbulhas do meu mosto começando a fermentar. Você não imagina a felicidade. Uma felicidade que durou pouco, é verdade, e aqui dou umas boas risadas, pois minha tentativa ficou na metade do caminho, com um teor alcoólico que não a permite ser chamada de suco de uva, tampouco de vinho. Mas fiquei apegada, e conservo a garrafa com aquilo que não sei ao certo que nome dar na minha geladeira. Seria natural e obvio, simplesmente assumir este fracasso inicial e deixar que aquele líquido púrpura no qual depositei tanta esperança e também amor escorresse pelo ralo. Mas como? Mantenho-o dia após dia, como um símbolo sei lá eu de quê exatamente, mas de algo que cheire a esta coisa simples e complexa que todos somos e que precisamos cuidar cotidianamente. Precisamos cuidar de nós mesmos, voltar pra casa, e lembrarmos do quanto somos a nossa própria morada. E ora, nesses meus delírios, não é difícil me transportar para uma possível vida na serra gaúcha, cantar Mercedes Soza em violas de noites frias ou frescas, como fiz lá desta vez, pescar traíra no açude e beber vinho e cachaça enquanto cantamos e cantamos e cantamos.
Mas do mesmo jeito que deliro com uma vida na serra – gaúcha ou fluminense – posso também me transportar ao sul da Bahia e, quem sabe, plantar cacau e fazer chocolate. Sim, também temos dados passos largos nesta outra bela e complexa arte que é a de produzir chocolates. E o sul da Bahia, ahhhhh, o sul da Bahia, com suas pitangas, mangabas e cajus. Com esses duríssimos dilemas filosóficos sobre se o melhor é tomar um banho de mar ou tomar um banho de rio, e logo ver que é só emergir de um e em seguida mergulhar no outro. O sul do Bahia com suas águas esmeralda, que nem todas as cartas do mundo seriam capazes de narrar ou expressar, esse pedaço de chão que fez a história ser onde o seu povo aqui pela primeira vez aportar e fazer de nós, pelas vias mais tortas e cruéis, hoje, povos irmãos. Esta terra de tantos encantos, onde , tenho certeza, Fiódor seria feliz, ou mesmo este filho que espero que cresça em minha barriga, sem o cretino “ainda” que um médico um dia achou que podia soprar aos teus ouvidos e te fazer estacar. Imagine, um menino, tal como um indiozinho feliz, nu a correr e mergulhar entre o rio e o mar.
E aqui, minha amiga, só posso te agradecer por me ajudar a estar em casa, por me ajudar a estar em mim. Sim, apesar dos delírios, continuo no Rio de Janeiro, nesta selva de pedra que ostenta para o resto do mundo este seu pequeno trecho entre montanhas e mar que parece reduzir o Brasil em si. E não. E digo mil vezes que não. Mas hoje não é dia de dizer nada. Hoje é dia de estar quieta, no vasto silêncio onde me aconchego e faço de cada pedaço que sou meu lar onde posso delirar, onde posso sonhar. Hoje é dia para acender o fogo da lareira, tocar viola e cantar. E hoje é dia de deitar na terra úmida e morna, olha pro céu e relaxar. E amanhã, é dia de luta, é dia de labuta. E quando você aqui voltar, sabe lá Deus se ainda, teimosa, estarei por aqui, ou onde terei inventado de morar. Quem sabe me metendo a fazer vinhos, chocolates ou, como vocês dizem, o que calhar. Mas, seja onde for, o certo é que escrevendo livros e arrumando alguma sarna pra me coçar.
O vinho acabou, e já entornei algumas vezes a taça vazia aos lábios na esperança de alguma gota derradeira e perdida ainda vir a me agraciar. Mas nada. Creio que já esteja na hora de deitar.
Grande beijo, minha querida amiga.
Até a próxima.
Bárbara
P.S. Esta semana vieram algumas amigas curiosas, para dizer o mínimo, me perguntar sobre qual sabonete de limão siciliano ando usando. Agora não tenho mais dúvidas: andam realmente lendo nossas cartas. Neste mundo tecnológico não há quem esteja seguro. Qualquer sensação de privacidade é mera ilusão.
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.