Lisboa, 11 de novembro de 2020
Oi, dona Bárbara,
Como estás, sua workaholic? Menina, uma pessoa mata-se a trabalhar e para quê? Para no final estar cansada. O meu corpo sente-se feliz depois de trabalhar muito e cair na horizontal. Os últimos dias têm sido assim e isso faz com eu, ratinho de laboratório, ande na roda, num perpétuo movimento, que dá a sensação de andar para a frente. Este é o ano de dar muitos passos atrás para, mais cedo ou mais tarde, dar muitos e mais um à frente. Não sou crente, mas tenho fé na minha perseverança. Como tu, que eu sei. Preciso que me contes, na próxima carta, tudinho sobre essa noite gloriosa do Rio de Contos. Vi a tua foto. Nossa, como tu ‘tava chique bem. Gostei. Estou aqui torcendo por ti e pela literatura, nosso amor comum. Eu moro na cidade do Rio… Tejo, ‘tá valendo? Devias abrir os horizontes, sabes como ando a treinar para os contos, quer dizer, andava, que agora a escrita de ficção tem estado parada. Sobrevivo das histórias da rua, que a minha imaginação depois dá uma laminada, mas é num pequeno movimento das ruas que me inspiro. Como sabes, o mundo está recolhido ao seu casulo. Vamos todos renascer lindas borboletas daqui a uns meses. Ou então, noivas e noivos cadáveres, relembrando Tim Burton, de tanta palidez por falta de o sol se banhar nos nossos corpos. É isso.
Menina, não te afobes como esses hormônios loucos, que nos deixam, tantas vezes à beira da loucura. Embrace them. É a expressão que me ocorre e que, acho, melhor define esse acolhimento e essa aceitação do corpo em constante labuta. Sabes, tenho pensado muito nessa questão do ciclo menstrual. De como eu tantas vezes o achei incómodo, doloroso, em algumas vezes, um estorvo. Um gasto em pensos higiénicos (absorvente para ti) ou tampão, lixo para o planeta, quando até é uma coisa orgânica. E de como hoje penso: Que bênção para quem o tem. É não só um ciclo de vida, como uma limpeza do organismo e como a sua ausência pode ser bem mais nefasta do que as dores que promove a cada 30 dias. Quando esse ciclo cessa, é todo um conjunto de coisas que desaba na nossa cabeça e é preciso preparação. Às vezes não estamos preparadas. Será que alguma vez estaremos? Ele deve ocorrer já numa altura madura, só que às vezes se antecipa, e tira o chão. A ideia de gerar alguém parecido connosco, rever traços físicos e de personalidade, aquele desviozinho no narizinho, aqueles dedos compridos, os olhos tristes, aquelas expressões É a tua cara, Ai, lindo como a mãe! Vê-se mesmo que é teu filho, essa ideia fica onde sempre esteve: na imaginação. Ainda pensa em ter filhos? Pergunta o doutor. O ainda irrompe ouvido adentro e vai tocar numa campainha que nem se sabe que existe. Ainda? Como assim ainda? Não vai haver um serzinho como tu. A ideia de gerar, talvez por ser uma pessoa com queda para o criativo, sempre me cativou. Gosto de processos evolutivos e esse é o maior de todos. Um girino encontra um ovo, persistente, quebra-o, misturam-se e esse grão de areia vai insuflando, insuflando, afastando todos os órgãos, ganhando espaço até que…puf. Sai. E a partir daí é outro processo evolutivo. Sempre disse: há um ser que me merecia como mãe. Por isso, minha amiga, embrace your period, o mais que puderes, respira fundo, deixa-te levar por esse momento de renovação, bota abaixo uma garrafa de Pinot Noir, medita, volta a respirar bem fundo, toma chá com um saco de água quente sobre o baixo ventre, dá-te ao trabalho de, perdoa-me a expressão, cagar para o Mundo, esse momento é teu, barafusta, arranca cabelo, enfarda doces, mas deseja-o. Um dia ele vai. E não volta mais. É um processo incrível esse, da menstruação, que vai desde a cabeça, lá no teu hipotálamo, que também rege os teus sonhos, até à vagina, quando termina, ensanguentado. Percorre várias partes do corpo, altera-as, mas a gente sempre sobrevive. O mundo das hormonas é dos mais complexos e assustadores, quase nunca possível de remendar.
E é isso, enquanto você se afunda no glorioso mundo da menstruação, o Fiódor ‘tá nem aí. Sempre achei que os gatos eram sensíveis a esse nosso momento mensal. O meu sempre andava mais dengoso… não sei, pode ser impressão. Não há animal mais sensível, não é? E sempre é um saquinho quentinho e bem fofinho para aconchegar uma barriga em erupção.
Estou contente que o tempo de recolhimento – não o do confinamento obrigatório, entenda-se – tenha chegado. Ele é bom para produzir.
Teu cheiro, desse lado, era de Limão Siciliano; por aqui, uma vela de baunilha invade o ar. Cheiro bom.
Vou cobrar a esfiha, ouviste? Não me esquecerei. Já salivo. Não te esqueças, quero saber tudo do Rio de Contos.
Beijo beijo,
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.
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