Rio de Janeiro, 09 de novembro de 2020.
Inês, querida
Te escrevo com sono. Muito sono. Bocejo enquanto digito estas exatas palavras. Não sou do tipo que se irrita com sono ou cansaço. A fome, sim, me irrita, me tira do sério. Eu com fome não sou gente boa. Mas o sono, em circunstâncias normais, apenas me deixa lenta, lesa. Em circunstâncias normais… Mas outra normalidade é a do período pré menstrual que estou, e algumas ordens se subverterem. O sono irrita. E não mais. E depois novamente. O cansaço irrita. E não mais. E depois novamente… É uma montanha russa… E as dores? Tudo dói. O cansaço dói… Qualquer pressão ou fricção menos gentil à pele incomoda. As carnes parecem estar encharcadas de hormônios doloridos. Depilar? Nem pensar…
Já estou quase entrando a madrugada e trabalhei até há pouco, como uma obcecada. Telefonemas, e-mails, e-mails telefonemas. Mensagens de Whatsapp… Já tive que interromper a escrita desta carta algumas vezes, para responder mensagens. “Ora, não me deixam em paz…” quero xingar… são os hormônios que me incham… respiro, olho a mensagem, respondo. Às vezes conseguindo ser gentil. Outras ensaiando uma má disposição.
Interrompo a escrita da carta novamente, agora só para cruzar as mãos, entrelaçar os dedos sobre os quais apoio a junção da nuca com a cabeça, descansando todo este conjunto no espaldar da cadeira que recebe o meu corpo. Fecho os olhos. Respiro fundo. Encontro algum conforto na música que toca. Don Shirley e seu trio me tocam The Lonesome Road. Me tocam. Respiro um pouco mais com os olhos fechados, esboçando um sorriso. Poderia ficar um bom tempo aqui, assim, sendo tocada pela música.
Penso que talvez, para relaxar, deveria tomar um pouco de vinho. Um fundo de taça já ajudaria. Mas bebi um bocado de um tinto do Douro na quinta. E me fartei em brindes com um espumante espanhol no sábado. E… afinal… hoje é segunda… dia perfeito para esta aquariana transgredir e tomar um bom copo. Digito. Minha cabeça dói. Vinho não é boa ideia. A cabeça dói dos hormônios, mas também pode ser de fome. Acabei dando umas escorregadas na dieta justamente com o tinto e o espumante, que ontem e hoje apertei um bocado mais na disciplina. Minha cabeça deve estar doendo pelos hormônios e pela fome. É o mais provável. O trapézio, o deltoide doem também. É um festa de desconfortos. Os meus. Pois, ao meu lado, Fiódor dorme o sono dos mimados. E como ele dorme bonito… meu gato é lindo… dou-lhe uma afagada e retorno às teclas. Don segue em seu piano. E a música repete e repete.
Respiro fundo, e me vem o aroma do meu sabonete que está no banheiro. É memória. É obvio o que o perfume da barra fechada no meu box não chega até a sala, de onde te escrevo. Mas esta memória me acalenta ao mesmo tempo que desconcentra. Fico pensando no sabonete… Quero trazê-lo, cheira-lo. Não sosseguei enquanto não o encontrei. O vi no Instagram, de uma marca dessas veganas e naturais para as quais estou migrando. A descrição de sua fórmula com limão siciliano e um tanto de manteigas e óleos hidratantes deixava esta tarada por cosméticos aqui um tanto ansiosa. Essas marcas veganas, quase todas de São Paulo, me deixam a morrer de desejo no Rio, com a língua de fora, tal como um cão faminto na impiedosa vitrine da tela do meu celular. Mas o tal sabonete de limão siciliano que andava pairando em meus sonhos, acabei por encontra-lo numa loja no Largo do Machado, na galeria onde há uma esfiha que na sua volta aqui te levarei para provar. Programa bem de carioca, como você gosta. Mas achei o sabonete, e o danado é tudo de bom mesmo, mas daí a eu ao fim de um dia de trabalho duro, já entrando a madrugada, começar a ter delírios com o seu perfume, já é algo a se observar com um certo interesse ou curiosidade.
Levanto, vou ao banheiro. Pego o sabonete e o coloco ao lado do computador. Sigo para a cozinha, e cedo ao fundo de taça de vinho. Fundo de taça. Mas cedo. Dou um gole. Digito. Paro. Pego o sabonete e levo-o ao nariz. Aspiro o limão siciliano. Don toca. Digito. Dou outro gole. Fiódor mudou de posição, mas segue dormindo. Afago-o. E assim vou… Tenho uma amiga que faz um bolo de limão siciliano sensacional, desses de comer rezando, desses que eu, que sou mais de sal que de açúcar, desejo e sonho ao ser importunada pelos hormônios que aqui me irritam, e fazem minha cabeça doer. A têmpora esquerda já está a me incomodar há tantas horas, que terei de, daqui a pouco, pedir desculpas aos gelos antárticos e aos seres do mar pelo ibuprofeno que vou neles depositar. Cheiro o sabonete, bebo o vinho e penso no bolo. Menstruar, para algumas, é uma epopeia de humores, sabores e odores. E dores…
Já adentrei a madrugada e, sem resistir, dou ainda uma olhada nas coisas de trabalho. É só clicar, mudar a página da tela do computador e ver. E vejo coisas que me emocionam, que me fazem querer chorar. Se já sou uma chorona, com esses hormônios, qualquer beleza me traz águas a embaçar a vista. Sorrio. Estou com sono. Estou cansada. Mas agora cheiro sabonete, tomo vinho, penso no bolo e dou risada. Eu estou apaixonada. Fiódor dorme. Ele é lindo. Don segue ao piano. E eu trabalho, mas já vou parar. Preciso, alguma hora, descansar.
Estou com sono, minha amiga, mas eu queria te escrever, queria te falar. Espero que não repare no meu humor. Tomo o último gole de vinho, e penso em mais um fundo de taça. Agora sou uma cansada animada. Mas nada que um bom chuveiro morno não dê jeito. Um bom banho com sabonete de limão siciliano e seus óleos hidratantes para me fazer sossegar. O perigo é Fiódor inventar de acordar a miar… aí sim, eu vou, de novo, me irritar.
O melhor é ir dormir, pois a labuta amanhã será longa, e o trabalho, mesmo apaixonado, cansa. As costas doem. E os hormônios ainda não irão ajudar. Mas te mando esta carta, e fico aqui pensando com qual foto. Você sempre me pede uma foto, e eu como fotógrafa sou uma excelente escritora… Nesse meu estado eu deveria era dizer “vá lá, escolha uma foto por mim…” seria o mais justo. Mas Fiódor dorme aqui, tão bonito, que mesmo sendo má fotógrafa, ainda assim, uma foto dele não poderá sair mal. E faço isto: te mando uma carta que chamarei de “limão siciliano” ilustrada com um gato a dormir. É esta a doidice que estou. E, vai ver, é esta a doidice que sou.
Grande beijo,
Bárbara
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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