Lisboa, 04 de novembro de 2016
Olá, Bárbara,
Ai vou eu. Estou no aeroporto, embarcando, vendo o sonho a ser cumprido. Deixo no Facebook a Terra dos Sonhos, do Jorge Palma, e ali, de forma camuflada, aviso a população que estou a ir para longe, sem dizer. Poucos sabem. Quis manter a viagem da vida privada. Ainda não te conheço, mas já gosto de ti. Esta é uma viagem de conhecimento. Há tanta gente aí que faz parte da minha linha e que vou ver pela primeira vez. Tios, primos. Ainda faltam uns dias para nos encontrarmos, mas acho que nos vamos dar bem. Vai ser curto, mas intenso, eu sinto. De ti sei que partilhamos o mesmo gosto pela leitura, pelos livros. Nossa, é muito simpático da tua parte acolheres-me, eu, uma completa estranha, apenas a prima portuguesa do teu amigo João. Agradeço-te muito, porque ia ficar sozinha num hostel em Ipanema. Sou uma sem noção, achando que ia andar por esse Rio sozinha. Louquinha! Ou será destemida? Olha, aviso já que quero ser nativa. Como são só dois dias, dispenso o Cristo e o Pão de Açúcar, sim? Quero andar pelas ruas, ir à praia, ser carioca. Leva-me onde achares bom. Lapa, sim, por favor! Deixa ver mais…a zona da Tijuca, por que não? Aceito ir aos botecos que tu costumas ir, não sou de beber, mas, um chope não mata, né? E por ora, é isso. Me aguarda, dia 11 estou chegando no Rio.
Beijinhos,
Inês
Esta podia ter sido a missiva enviada há, precisamente, quatro anos. Neste dia, vestida com uma sweatshirt cheia de poder, onde, sobre a peitaça, em letras pretas, se lê Dare to be Different, às 10 da manhã, lá ia eu, empolgada, rumo ao meu Brasil brasileiro. Só daqui a sete dias fará quatro anos que te conheço e, pese o facto de só termos convivido fisicamente por dois dias chuvosos, parece que é da vida toda essa ligação. Olha se o João não se lembra de ti dias antes de eu embarcar? Será que nos tínhamos cruzado, mesmo assim? O ano de 2016 foi grandioso para mim em quase todos os meses: viajei para a Alemanha, lancei o livro, viajei para a Suíça, depois para o Brasil, 20 dias, férias mais longas de sempre. Acho que foi o ano da bonança, antes da vida decidir entrar em modo furacão.
Foi já aí que a minha boca se abriu de espanto com a eleição, até ali improvável, do Trump, e hoje ela volta a abrir-se, com mais temor do que a data, por, ao acordar, me aperceber que as sondagens norte-americanas de nada valem (ou serão os norte-americanos pessoas que gostam de enganar as sondagens) e que corremos o risco de ter de aguentar mais quatro anos toda a insanidade narcísica contida naquele homem. Sei da tua trica com eles, mas a verdade é que o mundo fica em suspenso cada vez que lá alguém respira.
Voltando Aos recuerdos, de um ano que parece outra vida. Já pensaste que hoje eu poderia não estar escrevendo essa carta para ti? Que o PodCartas poderia não existir? O encontro de pessoas é uma coisa que me intriga, as ligações que são criadas porque um espaço e um tempo se encontraram. Nesse mundão de Deus, qual a probabilidade de nos cruzarmos? Ínfima, claro. Eu poderia estar noutro sitio a 11 de novembro de 2016. Em Ipanema e tu em Botafogo. Haveria uma segunda chance de não nos perdermos. O concerto na Praça Paris, lá na Glória. Como eu adoro coisas gratuitas, o mais provável teria sido eu pesquisar na internet coisas para fazer. E dar de caras com o Mimo. Foi tão engraçado saber que tu sabias quem era o Miguel Araújo e gostares! Até cantamos juntas. Lá está, qual a probabilidade de encontrar uma moça que gosta de literatura e de música portuguesas? Se calhar muitas e eu achando que não. Voltando ao Mimo, talvez não nos encontrássemos, porque era de noite e que estrangeira louca sairia debaixo de chuva à noite sozinha numa cidade como o Rio? A única hipótese era tu teres ido lá para Santa Tereza no domingo, enquanto eu almoçava uma feijoada gostosa com o meu primo e a gente ter se esbarrado na calçada. É…talvez essa hipótese seja mais viável. Eu falaria contigo porque tu trarias debaixo do braço o Jerusalém e falarias: Ah, foi uma amiga que chegou de Lisboa e me trouxe. E eu sorriria. É isso, moça, já voei para o Mundo da imaginação. Os encontros entre pessoas, como peças de um puzzle maior para que tudo faça sentido. Vim tão inspirada que ao chegar de novo a Lisboa, escrevi estas palavras, que volto a partilhar contigo:
“A língua ainda vem grudada naquele sibilar bonito. Celular, banheiro, uái, calcinha, muito massa, entendi, camiseta, você como tu, não jogar lixo no aterro, rodovia, retorno, café da manhã, jabuti, dutra, havaiana, canga, quebra-mola, bicho-grilo. A boca (e todo o meu corpo de novo mais roliço) ainda trazem sabores diferentes. Jabuticaba, cupuaço, jaca, pitanga, biri, caju, acerola, mangaba, carambola, açai, tapioca, aipim, macaxeira, mandioca (tudo o mesmo), acarajé, vatapá, bobó de camarão na praia deserta, paçoca, broinha de fubá, água de coco do quintal. Ainda cheiro ao quente do trópico, mesmo que tenha sido bem banhado de chuva. Chuva de chinelo no pé e camiseta de alça, com short. Às águas mornas, frias para os nativos. Ainda sinto (e sentirei) São Paulo, Rio, Porto Seguro – Baiano não nasce, estreia. Fui paulista, carioca, baiana. Entendi que há muita coisa que não sei sobre ele. Que é preciso estar para sentir o que é igual e o que é muito diferente. Que a imensidão de Sampa me relativizou a visão de grande e de pequeno. Que o Rio sem ser visto de cima é outra coisa. Que a Bahia é uma imensidão de azul e verde e a comunhão com aquela natureza nos torna melhores. “Ai, tou me sentindo numa novela”, repeti tantas vezes. E, para não faltar nadica de nada, o roteiro trazia um assalto à mão armada”.
E para tu veres essa conexão secular, na sexta-feira passada pensei: vou ver um dos Before. Nunca sei qual, escolho sempre consoante me sinto mais à procura de mim – e aí opto pelo primeiro – ou para tentar perceber o que ainda quero agora que os 30 estão a acabar – opto por Paris, matando também as saudades. Raramente vou à procura do grego, talvez porque seja o menos feliz de todos e para isso já chegam estes tempos. Mas não vi, porque não tive espaço na agenda laboral. Teres-me trazido a Celine e o Jesse foi um bálsamo e ele ter perdido o avião foi o melhor. Só que essa nem é a minha cena preferida. É quando eles chegam a casa dela, saem do carro e ela o abraça. “I want to see if you stay together or if you dissolve into molecules”. Até me arrepio.
E hoje fico por aqui, a recordar o dia em que parti.
Beijo beijo
Inês
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
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