PodCartas #9 – Onírico, constante e eterno
Escrito por Bárbara Caldas em 02/11/2020
Rio de Janeiro, 01 de novembro de 2020
Inês, querida
Como têm andado os meus sonhos? Abundantes, constantes, eternos… como sempre foram. Sonho muito, e tanto, que quando acordo preciso de um tempo, quieta, em silêncio, sem muito me mover, como quem chega de uma longa e distante viagem e precisa de espaço para se ambientar no sitio recém chegado, mesmo que este lhe seja mais que familiar. Então acordo, e será que de fato acordo? Parecia tão desperta há tão pouco em outra dimensão. Talvez o melhor seja falar que chego, regresso, sabe-se lá de onde, mas um onde que parece sempre tanto e tão vasto, que preciso de tempo para me sentir de fato retornada. Respiro, lenta, os olhos fechados querendo ainda lá estar se a paragem foi boa e a companhia desejável.
Os sonhos com o amor são assim: retorno, querendo lá estar, permanecer. Retorno, mas tudo em mim ainda traz o amor, que foi, que vem, que vai, que transita e não sai. Fico quieta esperando que assim o amor permaneça, mas ele se esvai. E a lembrança pulsante do amor vivido neste reino fluido do onírico, que estava agora mesmo, ali, sólido e palpável, simplesmente evapora-se e deixa a saudade acompanhada da cotidiana necessidade de levantarmos e vivermos.
Nada contra. Eu gosto de viver. Mesmo uns dias sendo dos bons e outros do nem tanto. Mesmo uns dias sendo de desespero. Quem não tem ou teve os seus? Mas é uma loucura esse negócio de amar a vida, e tanto que tenho em mim a certeza de passar de um século nesta minha existência. E lúcida. E cheia de paixão. Não consigo conceber outra coisa para mim. E com o corpo ainda a me ajudar, a estar com um bom bocado de energia e, quem sabe, a ainda querer chamegar. Como vão meus sonhos? Sonho tanto que mesmo ao acordar continuo sonhando. Sonho acordada. E escrever é um tanto disso, é estar imerso em delírio. Um dia que necessita de muitas ações práticas, sem espaço para o onírico, não é um dia de escrita, pelo menos para mim. Para escrever, tenho que estar no espaço do sonho, me transportar tal como se de algum modo dormisse.
E sonho não quer dizer sempre algo que nos alente. No livro que escrevo agora há passagens de dor tão extrema, que só de estar em algum universo imaterial a vive-las, quando retorno é tal qual como quando acordo de um sonho triste, ou pesado: preciso respirar mais fundo, abrir logos os olhos e ir sacodindo da alma a aflição da qual estou recém submersa. Submersa como quem há pouco se afogava e ainda luta para viver. É assim. Escrever é como sonhar. E sonho. E escrevo.
E nesses tempos pandêmicos de tantas saudades e privações, mais que os livros são os sonhos que mais me levam a passear. Minha lua é em peixes. Dizem que a lua é o campo dos nossos afetos. E peixes o signo dos sonhos. Se assim de fato for, estou fadada a sonhar com o amor. E mesmo quando ele está assim, à minha frente, em carne e osso, quando o toco, é sempre a sonhar. Ora, Inês, você veio falar de amor e de sonhos com esta romântica que não sabe o que faz de si de tanto que sonha e de tanto que ama?
Falando em amor, hoje assisti “Antes do entardecer” na televisão. Quando começou eu estava fazendo uma merenda e pensei em só dar uma olhada, mas gosto da última cena do filme, e quando vi, fiquei a li a espera-la. “Meu bem, você vai perder aquele avião”, ela diz. “Eu sei” ele diz. Ele diz e sorri. E de sorrir ele ri. A risada de quem se vê feliz. Nina Simone toca ao fundo. Ela dança e ele ri. E eu sorrio. Os quinze minutinhos de filme só para comer tornaram-se um longa inteiro, só para vê-lo rindo enquanto perde o vôo. “Baby, you are gonna miss that plane” Ele sabe. E eu suspiro e sonho. E como não? Como não querer um dia tocar e cantar, ruborizada, uma valsa ao seu amor, como faz Celine, aquela mulher que também é uma panela de pressão, no filme?
Bem, você hoje não deve estar me reconhecendo. Sem lutas. Sem dar o corpo às balas, como você mesma diz que faço sem medo. Talvez… isto depende mais do que podemos chamar de balas, e muitas vezes nos expomos menos ao nos posicionarmos e lutarmos nestas políticas do mundo, que ao deixarmos à mostra o coração. E não se iluda. Claro que tenho medo. E muitos medos. Medo do que será do Rio. Medo do que será do Brasil. Medo do que será de mim, e de todos nós nisso tudo. Medo do Trump dar um jeito de ganhar a eleição. E é justamente por isso que não se pode deixar de dar o corpo às balas e lutar. E é justamente por isso que não se pode deixar de sonhar.
Não preciso te dizer que estou aqui ouvindo Nina Simone, né? E agora te deixo ficando aqui com ela. Hoje não tem vinho, mas tem vela aquecendo um óleo essencial de pitanga com gerânio. Ando enchamegada com aromaterapia. Coloco óleos essenciais nas máscaras antes de ir à rua. Para a rua gosto de usar o de laranja doce. Mas para este domingo de chuva em casa este de pitanga com gerânio está perfeito e aconchegante. Pesquisei as propriedades de ambos, do gerânio e da pitanga, mas já esqueci. Mas lembro que é coisa boa, o que por ora basta. Vou ficando por aqui com os cantos da chuva e da Nina enquanto finalizo esta carta esticando os olhos para o livro da Eliane Brum na cabeceira. Esta é outra que luta e sonha, e que sempre vale a pena ler.
Grande beijo, minha amiga.
Bárbara
P.S. Estou bem melhor do ciático, mas algo está me intrigando, pois depois que te escrevi, muitas pessoas vieram me dar palpites sobre como aliviar o nervo inflamado. É sério: todo hora eu recebia uma mensagem pelo celular com alguém me dando conselhos ou orientando em tratamentos para me curar das dores. Fiquei desconfiada de que andam lendo nossas cartas. Será? Nesses tempos digitalizados nunca se sabe do que as tecnologias são capazes. Melhor ficarmos de olho. Pode ser uma cisma, mas realmente fiquei com a impressão de que andam lendo nossas cartas.
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.
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