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Transístor

Escrito por em 31/10/2020

Dez para as sete.

O tempo começa a mudar. A papelaria do bairro está quase a fechar. Uma fila enorme de pessoas espera para jogar na raspadinha. É constituída sobretudo por trabalhadores da construção civil que acabaram de chegar numa carrinha branca. Carregam nas mãos ainda sujas de tinta as notas da retribuição salarial do dia. Tiram metade para apostar em jogos da sorte.

Cá fora, alguns, depois de rasparem o cartão, retornam à fila para reclamar o prémio e apostarem tudo o que ganharam outra vez.

Enquanto espero, não consigo deixar de pensar que voltámos a estar limitados nos movimentos e só por causa disso começo a sentir saudades de Lisboa.

Chega a minha vez. O senhor da papelaria aponta o número dos jogos Santa Casa e avisa que vai fechar a caixa do Euromilhões. Um senhor atrás de mim pergunta se pode passar à frente para apostar trinta euros em combinações de números.

Fico a olhar para a bancada dos poucos jornais que ainda resistem no escaparate. Não consigo concentrar-me nos títulos. Os pixéis incandescentes das notícias que tenho lido no ecrã fazem soar o alarme da violência latente no mundo inteiro.

Lembro-me do que costumava dizer por ironia nas aulas: as transições entre épocas históricas deviam merecer mais atenção da nossa parte. São sempre mais complexas e demoradas do que aparentam no manual. São a chave da compreensão da natureza humana. São as mais difíceis de retratar.

Só por causa disso sinto todos estes períodos intercalados de calamidade e emergência pesar como séculos de transição. Observo no canto dos olhos das pessoas à minha volta, marcas do tempo, difíceis de sarar, provocadas pela falta de abraços.

Sete horas. Levanto a minha MOJO de outubro com os Beatles na capa: “We lost the naivety!”

A papelaria fecha.

Os trabalhadores da construção civil permanecem do lado de fora. Alguns sentam-se nos degraus do prédio ao lado. Começa a ficar frio. Pergunto-me onde dormirão. Se terão casa e se irão jantar. Se terão arriscado todo o seu dinheiro na sorte. Se terão o mesmo trabalho precário assegurado amanhã.

A expectativa destrói, mas só a esperança alimenta.

Como eles, penso que só perceberemos realmente tudo o que ganhámos e perdemos no final.

Filipa, 31.10.2020


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