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PodCartas #8 – Invasão onírica

Escrito por em 29/10/2020

 
Lisboa, 28 de outubro de 2020,

Oi, Dona Bárbara,

Primeiro que tudo: como está a tua ciática? Menina, a vida vai caminhando para a frente e o nosso corpo para trás. Sei bem o que sofres com esse nervosinho a querer ficar todo tenso todo o tempo e a obrigar-nos a parar. Eu acho que eu já estou, até, com uma perna mais curta do que a outra. A minha direita está mirrando. Também sei que não é essa dorzinha sistemática que te impede de ir à luta. Gosto de mulheres guerreiras e tu és assim, desde o dia em que te conheci. Como é que eu te aturo? Por isso. Sou mais resguardada no combate, mais temerosa, diria, e invejo – inveja branca, ‘tá? – o facto de não seres. Há sempre uma aventura gostosa para contares e eu ouvir, sempre uma peripécia que só te acontece a ti. E a luta, Bárbara, a luta pelas causas em que acreditas, para mais num país pejado de causas pendentes porque muitos não deixam andar para a frente.

Tinha tanta coisa para mandar nesta carta, não sabia por onde começar, mas, depois de muito pensar, lá encontrei o que mais me tomou a alma.

Como andam os teus sonhos? Tens sonhado muito? Eu tenho. O meu sono é pesado, igual a uma rocha da praia, pela minha cabeça não passa nada. Acordo todos os dias como se aquelas horas tivessem sido um interregno, o cérebro descansara. Só que, de há uns meses para cá, não sei se por menor atividade social, o meu passado e suas pessoas vagueiam pelo meu mundo onírico, com uma realidade que me assusta. Não são projeções, são reprises.

E numa dessas noites eu sonhei com o Miguel. O Miguel é aquela pessoa que todos já tivemos na nossa vida. Há uns dias falava sobre as tampas para as panelas, algo em que não acredito, em que para cada uma há uma outra. Desde pequena que eu acho que a vida é bem mais do que o amor eterno. Tive muitos, não sei se vou ter muitos mais, amores. Só que o Miguel bateu lá no fundo do fundo do meu coração, e talvez ele pudesse ter sido uma tampa para mim, panela de pressão. Dentro das minhas leis e regras, mas um amor eterno. O curioso é que no sonho ele tinha a mesma idade com que nos deixamos. Não sei como ele envelheceu. Ele estava ali, tão carne, tão osso. Sabes aquela sensação de desilusão quando acordas? É, foi isso. Será que tenho saudades dele? Não sinto isso, por isso me intrigou muito o sonho. Curioso, também, que nem falei nele naquele dia, não me lembrei dele acordada e pela calada da noite ele entrou pelos meus poros e instalou-se na memória. E com ele entrou amor. Sempre assumi para o Mundo que a lei humana que rege o amor conjugal não vai comigo. Não por imposição. Como qualquer ligação entre seres vivos. Ninguém impõe amizade exclusiva, parentalidade exclusiva, esses amores não são exclusivos. Acredito na doação ao outro por vontade, não porque outros me impõe isso. Ele foi a única pessoa em que essa doação era natural em mim porque reciproca.  E para essas pessoas, que gostam dessas doações e estão sem ninguém, como será que está a ser essa imposição de distanciamento? Pergunto-me várias vezes.

Também tenho sonhado muito com um espaço da minha infância. Esse eu acho mais fácil de explicar, porque no meio da encruzilhada, uma pessoa tenta-se achar. Ou encontrar um lugar de conforto, que não seja esse presente desconcertante, mas também desafiante, porque não?

Eu só sei que a minha cabeça vai continuar a produzir sonhos e eu vou continuar a dormir, ao mesmo tempo, como uma rocha da praia. É regenerador.

Entretanto, voltando ao mundo real, estou numa demanda como há muito não me acontecia. A minha pilha de livros de cabeceira começou a ver as folhas serem mexidas. Estive outra vez um tempo em que nada me puxava para ler. Quando digo nada, é nada mesmo. À conta de um programa de rádio bem famoso por estes lados, de seu nome Prova Oral, e por intermédio de um amiga que, me achando mais devoradora de livros do que sou, me pergunta: Já leste Pedro Paixão? Resposta curta e grossa: Não, nunca. Mas sei que ele tem um livro sobre Nova Iorque, respondi. E fui ouvir a emissão onde ele era o entrevistado depois dela me ter dito que valia a pena. Assim fiz. Que delicia de entrevistado. Como é óbvio, fui à biblioteca e requisitei. Um diário bem gostoso. Nisto, saiu o livro de um amigo meu sobre violência doméstica, e tenho intercalado os dois. Isto quando não vou às Crónicas da Clarice e leio uma ou duas – é livro para se ir consumindo a tragos. Eu, que nada tinha para ler, ando nessa promiscuidade literária. Eu gosto de ler em movimento, sabes? Podendo, leria e andaria pela rua ao mesmo tempo. Já fiz isso, em tempos, em horas de almoço sempre solitárias, regenerados. Eu entendo quando dizes que é importante ler mulheres. Eu bem tento, mas nem sempre calha. Acabando o Paixão, vou seguir para a argentina, com Robert Alt e os Os Sete Loucos, que é a próxima leitura do clube.

Se não forem os livros a levarem-nos a passear, que mais será este ano? Nada. Vá, o cinema também me leva. O FESTin, o Festival Itinerante de Cinema de Língua Portuguesa, que apresenta sempre uma série de filmes brasileiros, estava previsto para dezembro, vamos ver se não nos trancafiam em casa de novo. Já esteve mais longe!

Onirissídades para tu, menina, e para o Mundo, que está bem precisado.

Beijo beijo

Inês

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

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