Eddie Van Halen – O Guitarrista que veio do futuro
Escrito por Tiago Pereira da Silva em 27/10/2020
É possível que nenhuma outra guitarra do mundo seja tão imediatamente associada a um guitarrista como a Frankenstrat de Eddie.
Por estes dias vamo-nos enternecendo muitíssimo com as reacções do mundo musical ao desaparecimento de Edward Van Halen, sobretudo por parte dos seus companheiros de ofício. Também não é para menos. É que cada um deles sabe o que Howard Stern descreveu tão bem: “quando o Eddie Van Halen apareceu em cena, nunca ninguém tinha ouvido tocar guitarra daquela maneira. Qualquer um poderia sentir que algo superior estava a acontecer. Deixa-me triste perceber que nunca mais o iremos ver e ouvir. Quer dizer, para onde foi aquele talento todo? Haverá algum dia outro guitarrista assim? O tipo foi completamente inovador”.
Muitos estarão lembrados daquela cena em que a personagem protagonizada por Michael J. Fox no «Regresso ao Futuro I» pega nos Head Phones, com uma cassete dos Van Halen, que coloca no ouvido de seu pai que se encontrava a dormir. Numa volumosa guitarrada de Eddie, o realizador Robert Zemeckis (fã confesso da banda) pretende, através da personagem Marty McFly vestida de homem vindo do espaço, criar a ideia no espectador de que aquele som era de uma outra “galáxia”. Mas para os que como eu nasceram no final dos anos 70, há até um aspecto desse filme que nos ajudará a perceber melhor o impacto criado pelo aparecimento de um guitarrista como Eddie. Na sequência final, a personagem de Marty McFly numa guitarrada virtuosa que pretendia homenagear Chuck Berry, deixa o público completamente atónito com aquela sonoridade. É de ir às lágrimas ver a cara do guitarrista substituído (que acabara de se magoar na mão) a olhar para a guitarra tentando perceber como é que Marty acabara de fazer aquilo. É possível que boa parte dos guitarristas no activo, no ano de 1978, que ouviram «Eruption» pela primeira vez tenham feito aquele olhar sobre o instrumento, “mas como raio este som pode ser produzido apenas com uma guitarra elétrica e sem overddubs?”.
Filho de Jan Van Halen (Holandês) e Eugenia Van Halen (Indonésia), Edward nasceu em Amesterdão, na Holanda, a 26 de Janeiro de 1955. Em Fevereiro de 1962, ele, seu irmão Alex e seus Pais mudaram-se para Pasadena na Califórnia. O Pai, músico, tocava diversos instrumentos desde Clarinete ao Piano, sendo quase iconográfica a história em que Jan terá pedido para tocar a bordo do Ferry que os transportou para a Terra prometida, com o intuito de pagar as 4 passagens da família. Podemos ouvir Jan com os filhos, por exemplo, no álbum «Diver Down» no clássico Big Bad Bill. E acredite que é uma delícia. Aliás o pai de Eddie e Alex foi tão importante na formação dos filhos que quando numa entrevista recente perguntaram a Eddie: “se pudesse tocar com algum músico já desaparecido, como quem escolheria tocar?”. No silêncio arrepiante de Eddie e de uma audiência que talvez pensasse que a resposta pudesse recair sobre Jimi Hendrix ou algum desses vultos do passado, Eddie levantou a cabeça fixou o público, com segurança, mas timidez e respondeu com um simples: “I think i would jam again with my father” – Sorrindo de seguida para o seu filho Wolfgang e seu irmão na plateia.
Com a morte de Eddie, morrem também e para sempre os reis da California – os Van Halen. A história deste género musical nos EUA ficará para sempre ligada a três cidades e a três bandas. Se os Kiss eram Nova Iorque, Aerosmith os “mauzões” de Boston, os Van Halen tinham aquela sonoridade típica da Califórnia. Composta por Eddie na guitarra, seu irmão Alex na bateria, o baixista Michael Anthony e o cantor David Lee Roth, para quem se quiser lembrar, quando os Van Halen apareceram o Punk e o Disco Sound estavam na moda, eles foram de facto muito corajosos. O próprio Gene Simmons (dos Kiss) quando os ouviu tocar pela primeira vez não teve dúvidas em dar o primeiro impulso na banda e que estranhamente não resultou. Mas a arte e audácia do produtor Ted Templeman possibilitaram a Eddie, Alex, Michael e Dave mostrar ao mundo que eram uma bomba prestes a explodir para o mercado musical. Quando surgiu o álbum Van Halen boa parte do universo musical não se encontrava preparado para a revolução que estava prestes a começar.
Como referiu Eddie, em 2015, à imprensa: “nós tínhamos uma fé inabalável no que estávamos a fazer. Quando o primeiro disco saiu em 1978 nós já tínhamos anos e anos de estrada. Algumas pessoas da editora riam-se do que estávamos a tentar fazer”. O que fica para a história é que fizeram, no entendimento de muitos jornalistas que acompanharam a banda na época, aproximação de uma geração inteira ao Rock e ao Hard Rock. E marcaram definitivamente uma época. Até o interesse do público feminino pelo Hard Rock cresceu, quiçá, igualmente fruto da energia inequivocamente alegre e sexual da banda. Aliás, Dave, era o símbolo disso mesmo. Mas não se pense que isso caricaturasse a banda como algo pop, fresco, leve e pronto a servir para o grande público. Era o oposto disso, mas era feito com tanta sabedoria e verdade que o apelo comercial era inevitável. A guitarra pioneira de Eddie, com a batida certeira e densa de Alex, eram acompanhadas com uma simplicidade virtuosa de Michael Anthony (um dos baixos mais subestimados da história), acabando com aquele ingrediente das grandes bandas que é um vocalista capaz das acrobacias vocais (famosos gritos em falsete) e físicas em palco. O Hard-rock, esse, nunca mais seria o mesmo.
É claro que a banda, também ficará para sempre lembrada pela sua conturbada relação com os 3 vocalistas: David Lee Roth, Sammy Hagar e até o ex-Extreme – Gary Cherone. Quando comecei o meu “namoro” com a banda foi em pleno período Van Hagar e os álbuns «F.U.C.K.» de 1991 e «Right Here, Right Now live» um registo ao vivo de 1993. E se há dia que jamais esquecerei foi 0 15 de junho de 1995, em que com apenas 15 anos acabaria por ter dos momentos mais marcantes da minha vida. Fiz o sacrifício de comprar um bilhete para o concerto dos Bon Jovi, que me pareciam insuportáveis naquele tempo, só para ouvir e ver a banda que marcava e marcou completamente a minha existência. Sempre vi os Van Halen como uma daquelas bandas que não dá para gostar mais ou menos, ou, assim-assim. Normalmente é objecto de uma total devoção por parte dos fãs. Mas ainda sobre aquela tarde em Alvalade, lembro-me que a dada altura aquando do concerto dos Ugly Kid Joe, que tocaram precisamente antes dos Van Halen, Michael Anthony dirige-se ao palco escondendo-se atrás de um amplificador para espreitar a banda e o ambiente de um estádio a rebentar pelas costuras. É claro que entusiasmados, o meu amigo Hugo e eu berramos: – «Michaellllll» ao mesmo tempo que com as nossas mãos fazíamos o símbolo da banda. Michael Anthony riu-se e retribui-nos o gesto, iluminando uma tarde onde ainda ouviríamos Eddie produzir um excepcional 316. 25 anos depois continuamos presos aquela tarde mágica.
Mas apesar de ter vivido tudo isso muito próximo de uma banda que com Sammy Hagar era necessariamente diferente, também porque Sammy era simplesmente mais cantor do que Dave, sou fã confesso do período com David Lee Roth. E também é justo reconhecer que o período de (1978 a 1984) é o pináculo dos Van Halen. Os seis primeiros discos são obras para sempre recordadas. «5150» é um disco interessante, «F.U.C.K.», em minha opinião o melhor do período Van Hagar e ficamos por aí. Com Sammy aquilo virou um pouco para a banda das Baladas amorosas, enquanto que com Dave eles de facto corriam lado a lado com o diabo, capazes dos inspiradíssimos: «Jamie´s Cryin´» a «Push Comes to Shove» ou «Everybody wants some» e «Ain´t talkin bout love». «Fair Warning» e «1984» são dos melhores períodos em termos de criatividade de Edward. Aliás é curioso que em 1983, após uma colaboração de Eddie na canção de Michael Jackson «Beat it», em que o mesmo mudou a estrutura da canção criando um dos mais fenomenais solos de guitarra de que há memória, pretendendo até passar despercebido para os restantes companheiros da banda, ao ponto de nem ter recebido qualquer tipo de crédito ou recompensa financeira por sua contribuição, apenas um telegrama de agradecimento do grande Quincy Jones produtor do álbum «Thriller» de MJ. Álbum que até hoje permanece na 1.ª posição dos discos mais vendidos de todos os tempos. De facto, Eddie, naquele ano de 1983 encontrava-se no apogeu da sua arte. Oiça-se por exemplo os primeiros 7 segundos do solo de guitarra da canção «Jump» para se perceber a originalidade e o génio de Eddie. Aquilo é tão, mas tão arrebatador, que por vezes dá para por aquele solo em loop uma série de tempo. O acompanhamento do órgão nessa parte do solo de guitarra é também ela sublime. Aproveitando a folga dos restantes membros da banda, isolou-se em estudo (este foi o primeiro álbum da banda realizado no seu famoso estúdio 5150) e tocando vários instrumentos, tal como piano e sintetizadores, começou a criar aquilo que viria a dar origem a «1984», que muito mais do que o álbum mais popular batendo todos os recordes de venda da banda é também considerado por muitos como o disco mais completo da banda.
Eddie para além de estar na crista da onda, fazendo escola para todo e qualquer aspirante a guitarrista que tenha nascido nos anos 70 e 80, impressiona a sua consagração como multi-instrumentista. Ainda que com formação em piano clássico é sabido que Eddie não sabia ler uma partitura. O seu ouvido prodigioso sempre disfarçou essa dificuldade. Foi dessa forma que conseguiu, na adolescência, enganar o seu Prof. de piano durante anos. Dizem que «Spanish Fly» foi das primeiras vezes que pegou numa guitarra acústica e que por exemplo «Could this be magic» do disco «Women and Children first» foi feito da primeira vez que Eddie pegou numa guitarra acústica para tocar bottle neck! Sendo Eddie, nem me parece sensato duvidarmos.
Um dos aspectos de que falávamos há pouco, aquele som típico da Califórnia em que muito por força dos background vocals de Michael Anthony (exímio nessa arte) e precisamente de Eddie, a sonoridade da banda por mais Hard ou Heavy que pudesse parecer era ao mesmo tempo preenchida por uma harmonia vocal tão Beah Boysiana, raríssima em todas as bandas daquele tempo dentro do género. Aliás o processo criativo deles, no que ao trabalho dos harmónicos diz respeito, são um dos tratados mais preciosos da banda.
Certa vez perguntaram a Eddie se o irritava ou irritou ver aspirantes a guitarristas, como uma legião de seguidores: – “No início sim, mais tarde comentei com o meu irmão – Oh meu Deus que monstro ajudei a criar (risos)”. Sem ele, jamais teria havido, por exemplo: Joe Satriani, Steve Vai, Dimebag Darrell, Paul Gilbert, Steve Morse ou Nuno Bettencourt. Experimente durante a leitura deste texto, ouvir simultaneamente a entrada de «Van Halen» com “Running with Devil” ou «Van Halen II» e “You´re no good”. E por favor aumente o volume. Lembre-se também das celebres palavras de Sean Connery em «Goldfinger»: – “há coisas que simplesmente não se podem fazer”. Os Van Halen pedem volume. Mas falava de Satriani, Vai ou Bettencourt, acrescentaria mais dois ou três magos da guitarra como Slash ou John Mayer, sem esquecer claro Yngwie Malmsteen, somos capazes de ir às lágrimas ao ouvirmos as suas reacções emocionadas. Nuno Bettencourt ao contar-nos da primeira vez que tocou em frente a Eddie, parecia estou em crer como uma criança que acabara de receber o seu presente favorito. O mesmo nos parece contar Mike McCready dos Pearl Jam: “Quando tinha 11 anos, estava em casa do meu professor de guitarra e ele pôs-me a tocar: «Eruption». Soava como se fosse oriundo de outro planeta. Eu estava só aprender acordes básicos, coisas como AC/DC e Deep Purple. Aquilo não estava a fazer sentido para mim, mas era glorioso, tal como ouvir Mozart pela primeira vez. Muito do que acontece está nas mãos dele: a forma como segura a palheta entre o polegar e o dedo médio, o que liberta o indicador pelo tapping (técnica de martelar a corda). Ele consegue sons que não são necessariamente sons de guitarra, muitos harmónicos, texturas que surgem só pela forma como maneja a palheta na corda. Há um momento em «Unchained» em que parece que há outro instrumento no riff.” Como nos conta também Steve Nowicki: “O Eddie mudou para sempre a forma como fisicamente se tocava guitarra. Toda a gente conhece como modificou o Tapping, com as duas mãos no braço da guitarra não se percebendo bem o que fazia com a mão esquerda e com a direita”.
Por vezes há quem se esqueça que talvez nenhum outro instrumento tenha tido tanta popularidade, dentro do género Rock and Roll, como a guitarra eléctrica: Basta pensarmos em Chuck Berry, em Eric Clapton, Lennon, Harrison, Keith Richards, Gilmour ou Page. Por isso é muito natural que o impacto da perda de um dos mais brilhantes guitarristas da história da música tenha comovido desde o universo do Rock n´Roll, ao Hard Rock, Heavy Metal, mas também o do Jazz.
Gene Santoro, um dos mais conceituados jornalistas musicais que escreveu por exemplo para a revista Guitar World, considerou em 1991 que Les Paul foi tão “somente” o Thomas Edison da guitarra eléctrica. Não será por isso exagerado poder transmitir ao leitor que nunca se tenha cruzado com a biografia de Edward Lodewijk Van Halen, que este será uma espécie de Einstein ou Darwin da guitarra eléctrica. Se o primeiro foi inventor, o segundo foi o músico que estabeleceu uma timeline para o instrumento. Como perceberemos mais à frente, essa comparação com o universo da ciência (e diria até da religião), embora arriscada, parece-nos a justa medida, visto que Eddie para além de ter procurado sempre, na medida das suas necessidades, manter um olhar cientista sobre o seu instrumento, marcou cronologicamente um tempo que definiu uma era como que: um antes e depois de EVH.
O curioso é que o próprio Eddie confessou, numa das suas últimas entrevistas longas, o que Leo Fender lhe havia dito um dia: “Sabes Eddie! Eu, tu e o Les Paul somos os únicos capazes de construir uma guitarra a sério”. E tal como considerou, Alexandre Berni, recentemente: “É possível que nenhuma outra guitarra do mundo seja tão imediatamente associada a um guitarrista como a Frankenstrat de Eddie”. A falta de dinheiro foi o motor para suprir a dificuldade, com originalidade. Como muitos saberão, Eddie, não tinha forma de comprar determinados pedais, sendo que a fusão entre determinadas características que lhe agradavam em algumas guitarras, permitiram a génese da Frankenstrat. “Eu chamei-lhe «Frankenstein» ou algo próximo por todas as partes que a compõe. Como um corpo morto. Tirei isto daquela e daquela, etc.” Podemos ver no testemunho de Berni, outra vez, que Eddie Van Halen “combinou o corpo da Stratocaster com ponte Floyd Rose (criada na parceria e a fábrica do Floyd Rose), um braço genérico da fender mais barato (a partir de 1985 quem confeccionou os braços foi a Kramer), um captador humbcker de uma guitarra Gibson (há quem considere de uma Flying) e apenas um potenciómetro de volume, além das famosas fitas de adesivo. Nada mais do que isso.”
É também por isso que não ficámos chocados, quando ouvimos de EVH: “fiquei muito entusiasmado com o Clapton da era dos Cream, mas mais tarde perdi o interesse”. É que até Jimi Hendrix nunca foi, para ele, propriamente uma influência. Não é de forma alguma arrogante, estava demasiado concentrado na procura da sonoridade perfeita. É possível que Eddie tenha sido das figuras proeminentes da música, que menos ouvia o que os outros andavam a fazer. Repito: Estava demasiado concentrado no que queria fazer e até de certa forma impedindo derivas supérfluas por outros apelos musicais. Agora os Genesis e Peter Gabriel, eram dois dos seus grandes amores. Talvez o despertar do seu “tapping” venha daí, desse olhar dirigido sobre o guitarrista Steve Hackett da banda de Gabriel e Phil Collins. Quando ouvimos Eruption de Eddie, imediatamente percebemos a influência de Steve. Mas enquanto Hackett terá mostrado ao mundo como que uma rocha vulcânica, Eddie no seu acto inaugural de «Eruption» mostrou a explosão de todo um vulcão. “Nunca ninguém tinha tocado assim uma guitarra. É tão simples como a redefinição de como se passaria a tocar do ano de 1978 para a frente. Era algo monstruoso o que estava a acontecer” diz-nos Rick Beato.
Mais do que a invenção, sua inovação foi juntar novos elementos e criar padrões diferentes. Para além do já falado “two handed-tapping”, foi também decisivo na abordagem “natural and artificial harmonics” vibrato, tremolo “picking” e “volume swells”, já para não falar e tal como considerou também Beato, que Eddie foi dos mais importantes e originais guitarristas rítmicos de sempre. “Muitos falam sempre do “tapping” e dos seus solos, mas a sua originalidade rítmica foi fenomenal, como se pode confirmar facilmente nos primeiros 6 álbuns da banda”. Desde a construção da guitarra, ao que pudesse revelar o som que tinha dentro dele, à própria concepção do PA em que Edward também faria escola. Essa parafernália de decibéis ia sendo formada numa injecção de adrenalina, em que o fulgor frenético da sua estética e virtuosismo mudariam para sempre a história da guitarra e em grande medida, a forma de se procurar estabelecer o rock da altura.
Mas agora encontro-me aqui, pela primeira vez escrevo sobre um dos meus heróis, mas com este já desaparecido. Numa época em que eu com 11 ou 12 anos, via toda a gente varrida pelo Grunge que fazia a moda do início dos anos 90, sou muitíssimo grato ao meu irmão mais velho que me mostrou os Van Halen, e o Eddie em particular, pela primeira vez. Nunca encontrei na escola alguém da minha idade que andasse a ouvir as mesmas coisas do que eu, mas que feliz fico por ter andado, por esses dias, sozinho contra o mundo ao meu redor.
Tiago Pereira da Silva
Fotografia de capa por Carl Lender.