Faixa Atual

Título

Artista

Background

PodCartas #7 – Apesar de você

Escrito por em 19/10/2020

 
Rio de Janeiro, 22 de outubro de 2020

Inês, querida

Por aqui estamos em tempo de eleições. Para as prefeituras e câmaras de vereadores. Adoro eleições. Adoro votar. Ano passado fui votar até para o conselho tutelar. E fui bem feliz. E por mais que por aqui o cenário político não ande muito inspirador, e até um tanto assustador para o resto do planeta, ainda assim consigo manter em meu coração acesa a chama política. E digo: eu gosto de política. E creio na necessidade da participação cidadã ativa na vida política. Creio mesmo.

E quando falo em adorar, falo agarrada à carne e à alma do verbo, que nos faz tanto sorrir quanto chorar pelo que adoramos. Sofremos e gozamos. E assim vamos…

2018… pense num ano de sorrisos e lágrimas… Mataram Marielle. 14 de março. Mataram Marielle. Me lembro de tudo. De ter acordado e recebido de um amiga brasileira que mora na Holanda um zap comentando comigo. Fiquei confusa: “Que Marielle??? A vereadora???” E continuei confusa ante a resposta afirmativa de minha amiga. “Como assim?”. Não que fosse novidade, aqui no Rio, digo, no estado do Rio, mata-se por política com uma facilidade inacreditável e que sempre me chocou. A pessoa é pré-candidata ao legislativo municipal e já está sendo morta. É assustador. E mais assustador ainda é que, quando muito, o homicídio ganha um dia de menções nas mídias, e vida que segue. Na capital nem tanto. Mas na Baixada Fluminense, na região metropolitana, e também pelo interior do estado é bem comum. Creio que tenham se valido disso ao matarem Marielle, valeram-se desta pouca ou nenhuma consequência histórica que aqui geralmente temos a cada político morto. Não dá em nada, e quando muito, dá em pouca coisa. Só nesta eleição de agora, já soube de dois candidatos a vereador e um a prefeito que morreram de morte matada aqui no estado. Fora o que eu não ouvi falar. Valeram-se desta normalidade ao matarem Marielle. Foi em 2018: 14 de março. E no dia seguinte lá estava eu em passeata no centro da cidade, em manifestação na Cinelândia. Um ajuntamento de gente. De gente perplexa. De gente comovida. De gente às lágrimas. Um ajuntamento inesperado, robusto, revoltado. Um ajuntamento humano. E o que é o humano? Se humano é o que ri e chora, na Cinelândia, no dia 15 de março de 2018, choramos.

2018: o ano que não tardará a se imortalizar em nossos livros de História, com professores em sala de aula a se desdobrarem para explicar que raio que nos aconteceu, o que foi que nos deu. 2018. Mataram Marielle. Me lembro de tudo. Me lembro do “Ele não, ele não, ele não…” que gritamos, já em setembro, de novo, na Cinelândia, no Rio, e em todo o Brasil. Éramos homens e mulheres. Mas éramos muitas, muitas, incontáveis mulheres. Foi lindo. Estávamos com medo. Não ali, que éramos tantas, milhares. Mas estávamos com medo. Havia um clima estranho, uma violência no ar que nos entrava pelo corpo ao respirar. Eu tinha medo. Medo de, como sempre, como de costume, me manifestar, deixar que o que eu vestisse mostrasse em quem eu iria votar, e, em qualquer canto ou esquina haver quem por isso viesse a me magoar, me violentar. 2018. Nos meus então 41 anos, tal medo, nunca antes. 2018 foi o ano de uma fatídica eleição. Mataram Marielle. “Ele não”.

Mas hoje, nesse dia de final de outubro de 2020, estou animada. Mesmo com o ele não hoje nos arrumando uma nova aporrinhação – cada dia tem uma, um devaneio diferente deste senhor que nos desgoverna. Estou animada, mesmo com essa dor no ciático que, já sem conseguir mais ficar mais sentada, me faz deitar na rede, e recorrer a malabarismos para te escrever. Minha mãe briga, me manda tomar um analgésico, diz que eu pareço gostar de sentir dor. É assim também com as cólicas mensais, que me contorcem a seco, sem nada tomar para me aliviar. Minha mãe quer que eu ceda a uma dipirona ou ibuprofeno, esses mesmos que tem sido largamente encontrados nos gelos antárticos, sabe? E… menina, como foram parar lá? Que coisa… nos entupimos de comprimidos ao sinal do menor desconforto, e quando colocamos pra fora as nossas águas, parecemos dar a descarga, como se fosse isto uma espécie de toque de mágica, de alquimia superior, que desfaz no éter o que usamos por no aguentarmos qualquer mínima dor. Mas não… Aqui no Rio é inacreditável, temos uma drogaria a cada 100 ou 200 metros. Somos uns hipocondríacos, tarados e hipócritas, viciados em rivotril mas, belicosos, rechaçando e combatendo com a devida raiva qualquer iniciativa de legalização da maconha. Minha mãe disse que maconha é bom pra minha cólica menstrual. Leu no doutor Google. Eu disse à minha avó que maconha é bom pro seu glaucoma. Li no “Jardineiros de fumaça”, livro da gaúcha Carol Bensimon, uma ficção que se passa na Califórnia. Taí, mais uma mulher para eu te estimular a ler. Leiamos mulheres!

Mas então, fico aqui na rede, com dor, e se em algum momento não mais me aguentar, ao invés de a uma farmácia, talvez eu vá a uma peixaria, comprar uma bom filé de atum, que selarei de leve numa frigideira bem quente com um fio de azeite, e assim resolvo dois assuntos: o da proteína e o da novalgina. E melhor não pensar se de quebra não vem um antibiótico, ou mesmo um rivotril. Rivotril ninguém merece. Sou mais o meu vinho. Falando nisso, meu pinot noir acabou. Esse sim, talvez fosse de alguma valia pro ciático. Um ciático alcoolizado deve doer menos. E este aqui, que carrego comigo, não está doendo pouco.

Mas, como eu ia dizendo, hoje estou animada, animadíssima, porque as pesquisas eleitorais atualizadas deram sinais de que podemos, (sim, sim, sim!!!) eleger uma prefeita para o Rio de Janeiro. A candidata que, agora, já sem medo, estou pensando em colar um adesivo de sua campanha na minha máscara quando tiver de sair à rua nesta primavera pandêmica e eleitoral. Isso sim, me enche de alegria e esperança de estarmos aos poucos saindo desta loucura coletiva que nos tomou como nação. O Brasil nunca foi para principiantes. Somos complexos. Somos estranhos. Somos controversos. E quem se apega ao estereótipo que vendemos ao mundo, muito se engana. Somos conservadores. E… mesmo com tantas opções digamos assim, progressistas, o normal e o histórico por aqui é que votemos mais como conservadores, que votemos até como hipócritas, e se isso pra mim não é bom, ainda assim prefiro à normalização do voto psicopata. E que venham os novos ares com uma possível prefeita! Ora, isso me dá vontade de botar aqui para cantar o velho e bom Chico.

Mas, menina, revisando esta carta, fico cá me perguntando como você aguenta se corresponder com uma criatura que em menos de duas páginas muda de assunto como que muda de roupa. E muda também o tom da narrativa, vai do choro ao riso, da depressão à euforia… haja rivotril. Ou maconha… pra dizer a verdade, não tem pinot noir, mas tem um cabernet sauvignon. Talvez isso me dê um pouco de jeito de passar pelo menos da rede à cama, já que à cadeira ou ao sofá, por enquanto, nem pensar.

Vou ficando por aqui, mas te deixo com Chico. Dance com ele. Com vinho ou com chá, tanto faz, o importante é dançar. Dance por mim, que daqui da rede, só posso cantar.

Grande beijo!

Bárbara

Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.

Ouça as restantes PodCartas aqui.