Lisboa, 15 de outubro de 2020
Oi, Dona Bárbara,
Sabes que palavra me ocorreu assim que terminei a tua carta? Coragem. Coragem por usares a palavra preto numa época em que é quase sacrilégio. Talvez aí não tenha um sentido tão duro como cá, não sei. É uma época em que temos de pensar seriamente no que podemos ou não podemos dizer, com que adjetivos podemos adornar certos nomes. É também um tempo em que, ao mesmo tempo, e passo a redundância, me congratulo por se começar a perceber que as palavras, a linguagem, podem mudar uma sociedade. Só que ao mesmo tempo a minha cabeça dá um nó, porque a linguagem deveria de ser fluida. Pensada, claro, mas fluida. Isso faz-me partilhar o que se discutia há duas semanas, num programa que passava na televisão, sobre a masculinização/feminização dos nomes, de como deveríamos, para alguns entendidos, chegarmo-nos mais às línguas neutras, em que apenas adjetivando o nome se sabe se falamos de mulheres ou de homens. Como repórter, por exemplo, que no nosso caso se daria pelo artigo definido. No inglês eles usarão sempre male ou female. De que forma as palavras se infiltram em cérebros estigmatizados e lhes dão a volta? E dei por mim a pensar de que forma isto me limita no dia a dia e, para já, não cheguei a conclusão nenhuma. Parte de mim ainda pertence a uma minoria que luta, a de ser mulher, e, por outro lado, sou das letras, amo jogar com elas, deveria ser mais sensível a uma super-masculinização da oratória. Ou nem deveríamos ficar tão focados nas palavras e pensar nos atos? Será que o mundo se quer todo neutro? Teríamos munde neutre. Estamos preparados para matar o a e o o? Doces letras, por imposição dos falantes, iremos proceder ao vosso aniquilamento! PUM! Será este o melhor tempo para o combate aos preconceitos sobre a cor da pele e sobre o género e sobre todos aqueles que se sentem oprimidos? Por outro lado, este é um tempo propicio à opressão, como sabemos. O que faríamos do nosso quotidiano sem essas lutas, esses declives, numa tentativa de criar planícies e não montes e vales? O que seria o Mundo atingida a igualdade? Talvez seja a altura ideal, que agora estamos todos virados de ponta a cabeça. E retomo um ponto que frisaste na tua carta: as quotas. Odeio as quotas e olha que eu já arranjei emprego uma vez por ser mulher, porque queriam uma para uma equipa composta só de homens. Assumi essa entrada e fui com tudo, porque no intimo sabia que tinha, em parte, as competências. Estes meus últimos dias foram intensos no que à nossa luta diz respeito, olha que coincidência!
Durante estes dias tem por aqui a Festa do Cinema Francês, um habitué já. Tudo muito ordeiro na hora de sentar e ver o filme. Continuo sem me sentir confortável a usar máscara na sala, desta vez pensei que fosse desmaiar (a coisa por aqui entrou de novo em estado de calamidade, soubeste?). Tenho de comprar uma máscara de longa duração, das que tem um bico. Mas continuando com o que interessa. Escolhi uma sessão com três documentários da mulher em destaque este ano, a francesa Delphine Seyrig e sob o lema Insubmusa (esse jogo simples está brilhante. Insubmusa). Escolhi porque um deles chamava-se Inês. E sabes quem era essa Inês? Uma brasileira, Inês Etienne Romeu, uma das muitas torturadas na era da ditadura brasileira. Delphine recriou o momento da tortura em dolorosos 19 minutos. Preto e branco. Insultos e a mulher, nua, num canto. Depois, presa como um porco no espeto. Sem rodeios. Ela engravidou do torturador. Imagens, ainda que em recriação, que deveriam ser vistas, sempre. Odeio violência, mas tenho um apelo por esse tipo de histórias. O último, ainda que longo demais, mostrava a luta de um grupo de prostituas, em Lyon, no verão de 1975, por condições dignas de trabalho. É um filme de outra realizadora, Carole Roussopoulos, mas Seyrig esteve envolvida. Elas barricaram-se numa igreja, o que já é tremendo. Eram enxovalhadas, a perseguição policial era de tal forma que por mais que quisessem mudar de trabalho – uma delas, com dois filhos pequenos, solteira por opção, queria ser educadora de infância – a polícia tornava isso impossível. Estamos a falar de há quase 50 anos. O que mudou? Nada. Nada mudou em relação à prostituição e à forma desgraçada como encaramos o sexo. Quando mudará, pergunto.
De cada vez que me coloco frente a frente com estes trabalhos, entendo como me faz falta contar histórias e como, levada pelo teu gosto, fui escutar mais mulheres falarem sobre Eliane Brum. Uma das participantes do encontro online disse que ela a tinha feito compreender que o jornalismo que ela queria, e que podia existir, era esse de contar histórias, dar ar aos textos, ouvir com atenção quem connosco partilha. Não era o do facto rápido, ali, na hora, a linha que precisa de entrar para aguçar a curiosidade.
Esta foi, para mim, uma semana de lufadas de ar fresco em tempos em que a respiração pode, até, nos matar. Enquanto redigia a missiva, escolhi uma diva para me acompanhar. Juliette Gréco, xará do meu alter-ego, trilha sonora da minha vida parisiense, e que, de temps en temps, recupero. Tive a sorte de a ver há uns anos, em lindos 80 anos, no CCB, em Lisboa. Última sobrevivente dos borbulhantes anos 60, dos pensadores, dos combatentes e resistentes. O idílio para quem gosta destas coisas. Gréco cantava Il n’ya a plus d’après (‘tá bom, era em Saint-Germain), mas eu acho que há. Sempre.
Beijo beijo,
Inês
PS: Hoje sou eu quem te deixa um post-scriptum. Durante anos intervalei o cheiro de baunilha com o de coco, sabes, aquelas fragrâncias para usarmos. Ainda hoje há quem me associe ao cheiro a baunilha. Não acendo muto velas, mas acendo incenso e posso garantir-te que o de baunilha está entre os cheirinhos bons. Também não tomo vinho, nem quando estava sozinha, que um copo, ou taça, como tu chama, já me adormecem. Pode se dançar com chá?
PS2: Quanto à música, concordo contigo, somos invadidos pelos Estados Unidos, mas o jazz e o blues que nos dão, então neste tempo que vem mais fresco, são um bálsamo para mim. Abençoados! Cabe-nos ser exploradores e ir na trilha dos sons que nos fazem felizes.
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.
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