Rio de Janeiro, 4 de outubro de 2020
Inês, querida
Gostei da sua reflexão sobre trilha e banda sonora, e isto acabou falando muito de perto comigo, pois, quando escrevo, geralmente é com música. Sou uma apaixonada por música e, mais do que tudo, pela música brasileira, e no momento da criação, quando sento para escrever, sempre acaba por me vir alguma canção, que coloco para tocar infinitas vezes, e a sensação que me dá é justamente a da música funcionar como um trem, um algo ao qual me entrego e me deixo levar, conduzir, enquanto coloco no papel a pipoqueira que me estoura na cabeça, essa espécie de big bang que me toma o corpo, me colocando nessa ousadia de criar mundos em letras. É uma loucura. E a música da vez repete, e repete, e repete. Me preocupo com os vizinhos, se o volume lhes chega aos ouvidos, menos por incomodá-los e mais para não me acharem louca, alguma espécie de obsessiva ou seja lá o que for. E As músicas acabam por ter suas letras transformadas em epígrafes de capítulos, como as tantas que você viu ao ler o original do Seu Zé, que espero lançar até o início do ano que vem.
E comecei esta sua carta também com uma epígrafe, com a versão para o português de O dia que me queiras, que coloquei na voz de Dalva de Oliveira, que já me serviu como locomotiva num capítulo do livro que estou escrevendo agora. Eu era uma criança estranha, que gostava de tango e me apaixonei por um disco da Dalva que era de minha mãe, e o escutava incansavelmente a fazer filmes na minha cabeça com aquelas letras tão intensas, tão apaixonadas, entronizadas pela potência dos violinos (creio eu que são violinos) e do acordeom. Uma lindeza. Olhando de cá, vejo ali, aquela criança já dizendo ao mundo qual a contribuição que ela tinha a lhe dar. Era só esperar pra ver no que aqueles tangos iam dar.
E falando em espera, apesar de gostar da definição do Gonçalo para o verbo, colocando-o como a tarefa de quem espera, eu ouso retocar o seu querido mestre, pois aqui me ocorre o verbo mais como um exercício, e dos físicos, pois ao nos exercitarmos, por mais atléticos ou bem treinados que sejamos, chega sempre o momento da agonia, do ofegar, da sensação de não mais suportar. E temos de dar o nosso jeito de fazer entrar o ar, de fazer o organismo se acalmar e assim continuar. E a vida é feita de esperas, e vamos nelas puxando para dentro o ar, respirando, para que não nos sufoquem. E esperamos por tudo, desde pelo ônibus ou metrô até pela inspiração. Esperamos pelo lançamento do filme, do livro ou mesmo da nova temporada da série pela qual estamos ansiosos. Esperamos pela chegada da chuva, pelo retorno do sol, pela lua cheia e pela lua nova que dá no céu lugar às estrelas.
Eu espero pelas jacas no verão e pelos pinhões e alcachofras no inverno. Vamos ganhando tônus, e podemos esperar um tempo inacreditável por um beijo. O corpo ganha formas, e do beijo só espera
para poder fazer amor. Eita, fiquei romântica. Deve ser o tango, aqui tocando no meu cangote, agora com Carlos Lombardi, ainda O dia que me queiras, que se repete e repete, baixinho, para que os vizinhos não me achem louca. E esta é a locomotiva, estava eu aqui planejada para te escrever outras coisas, e o tango me ditou novas letras, e como, com uma trilha desta, não se deixar conduzir?
Lembro que aos 15 anos, quando saí da Bahia e fui morar em São Paulo, a minha vida por um tempo era justamente isto que aqui fazemos, um eterno escrever e receber cartas, cartas de tantos afetos dos quais eu me sentia arrancada e que se faziam presentes naqueles envelopes que me chegavam, e que eram tão, tão tão esperados. Envelopes que muitos deles estão guardados e me acompanham até hoje. E olha que interessante, quando eu tinha 15 anos era 1992, justamente os 25 anos após a entrevista de Clarice, que, esperançosa quis profetizar dias melhores para o Brasil. Se ela não foi ingênua, foi pelo menos demasiado otimista, ainda mais estando ali o país já sob o jugo de um golpe, de um governo militar que acirraria ainda mais seu autoritarismo e truculência logo no ano seguinte, 1968.
Mas falo e mordo a língua, me achando um tanto abusada, há pouco retocando Gonçalo e agora ensaiando um puxão de orelhas em Clarice. Mas o fato é que em 1992, contrariando as expectativas da nossa amada escritora, o Brasil passava pela tristeza de ver o primeiro presidente eleito após a redemocratização sofrer um impedimento, num processo que fez toda uma juventude pintar a cara e ir as ruas acreditando protagonizar a queda que disto se sucederia, quando é muito claro haver ali forças gigantescas e ocultas a, como sempre, nos fazer de marionetes. Falo em tristeza, mas me lembro de minha alegria eufórica que me fez enfrentar meu pai e ir para a Avenida Paulista comemorar a queda do presidente que eu, lá na minha pequena Porto Seguro, aos 12 anos de idade, trabalhei como gente grande para que não fosse eleito. Falo em tristeza, mas a música que cantávamos, e repetíamos e repetíamos sem medo de parecermos loucos era Alegria Alegria de Caetano Veloso, que emergia do Tropicalismo invadindo as rádios e as televisões como tema de abertura da série Anos Rebeldes da Rede Globo, que nos trazia justamente a época e também alguns horrores da ditadura que vivemos na década de 60.
E falo em tristeza porque hoje vivo aqui esta vergonha, esta indignação triste e diária que, agora já sem pudor, só me faz discordar e discordar de Clarice, lamentando profundamente por tudo o que me leva a tal discordância. Aqui há dias que parecem um pesadelo, um pesadelo destes que só quero saber quanto tempo esperarei para que passe. E esta é, creia-me, das esperas que mais sufocam.
Pensando bem, eu estava melhor romântica, a falar de luas cheias, céus estrelados, beijos e amores. Acho que agora vou ficar aqui com meu tango, quem sabe abrir um vinho e suspirar um pouco mais. Talvez isto do tango me venha do avô argentino que não conheci, que era gerente de banco mas tinha sonhos de escrever. Mas isto é outra história, que um dia te conto. Há sempre tanto a falar… nem te respondi sobre o português brasileiro ou simplesmente brasileiro, mas também não precisa ser agora, há assuntos que precisam do devido tempo de meditação e este é um deles. Vai ficar para a próxima. Por ora acho que vou beber, suspirar e possivelmente dançar. E… sim, esperar. Esperar pela tua resposta.
Grande beijo. Sigamos na primavera.
Bárbara
Duas amigas, uma brasileira, outra portuguesa, decidiram fazer da carta o meio de comunicação, num ano que teima em ser diferente. Um ano em que não se podem encontrar fisicamente. Nas cartas, como antigamente, fala-se da vida por escrito. O que incomoda ou atormenta, o que faz feliz, indaga-se, mas, principalmente, partilha-se. A próxima ligação direta Rio-Lisboa é feita aqui.
Ouça as restantes PodCartas aqui.
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