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Entrevista a Marjorie Estiano: “O fantástico te liberta de muitas regras”

Escrito por em 01/07/2019

O próprio nome já cria uma unicidade. Marjorie Estiano. O apelido, que não vem na certidão de nascimento, é uma homenagem ao avô paterno, que não conheceu. É, aos 37 anos, uma atriz que não deixa nenhum papel escapar da memória de quem vê, um dom, num tempo preenchido pelo efémero e superficial. Começou, em 2004, na novela juvenil “Malhação” e deixou logo aí, bem claro, que vinha de um outro mundo. A carreira, com pouco mais de uma década, está recheada de mulheres diferentes. Marjorie, como o seu Brasil, tem mil faces e citando um verso de um poema de Adélia Prado, Com Licença Poética, “Mulher é desdobrável. Eu sou”, assim é ela. Nada óbvia, aí reside o encanto. A atriz esteve em Lisboa a convite da Embaixada do Brasil em Portugal para estar presente na exibição do filme “As Boas Maneiras”, incluído na 2.ª Mostra de Cinema do Brasil, que decorreu no São Jorge. Um filme pelo qual tem uma paixão imensa. E falamos com ela.

Numa entrevista sua, em 2009, bem no começo, dizia que dada a sua timidez, andava depressa só para a pessoa não ter nem tempo de achar que podia ser você. 10 anos depois, ainda é assim? Ainda consegue passar sem ser notada?
O que eu chamava de timidez foi aos poucos ganhando outro entendimento e outro nome. Percebi que ela falava mais da minha característica de ser reservada do que outra coisa. Bem no começo, 2004/2005 quando deixei de ser uma pessoa anónima e não sabia lidar com essa exposição, tentava evitar situações onde o assédio seria grande, sobretudo, porque o público que me acompanhava era de adolescentes e esses são os mais efusivos. Em 2009 já não era mais assim e 2019 também não. A relação que fui construindo com o público é muito respeitosa hoje e gradativamente fui aprendendo a usufruir bastante dela. Foi amadurecendo junto comigo.

Nessa mesma entrevista falava de um tempo antes, ter pensado desistir. O que não fez desistir? E desde esse ponto de insistência, como foi o seu percurso?
Me questiono muito. E me questionei mais de uma vez se de facto aceitava o ónus e o bónus desse contrato que assinei comigo. Ser atriz. E acho que ainda vou questionar mais vezes. Por hora, combinei comigo de fazer contratos de prazo mais curto e ir reavaliando no decorrer a renovação desses votos com a minha profissão. Não consigo me mover se não encontrar sentido e me seduz muito descobrir lugares novos pra explorar. Acho que a manutenção e atualização dos desejos, me ouvir é importante pra me manter presente, inteira e vigorosa. Continuarei nesse caminho enquanto ele fizer sentido pra mim. Se mudar de direção, não será por desistência será por constatação de fim de ciclo. A percepção de que ela já fez o papel dela na minha vida.

Marjorie, a atriz. Que foi Laura, Manuela, Bibiana, Marina, Maria Paula, Cora, Beatriz, Carolina, Emília, Milene, Giovanna, Natacha, a Tônia, a Mariana de Ligações Perigosas, um dos meus filmes e livros preferidos. São mulheres que não se esquecem. Como consegue compor mulheres tão diferentes, que torna em extremamente reais, credíveis? Todas estavam em si? Qual o seu método?
O meu processo de construção das personagens é o resultado de uma composição de vários elementos. Tem algo comum em cada processo e tem suas particularidades de acordo com cada personagem e obra. O roteiro é a base e o processo de pesquisa varia. Muitas vezes se vale de imagens, pinturas, fotografias, esculturas, exercícios práticos de investigação, discussão… tem uma parte intelectual e uma parte física de investigação. Muitas coisas são entendidas através da experiência e ocupam um espaço muito próprio e sensorial. Os olhos entendem de uma forma diferente da palavra e é assim com todos os sentidos que se somam em um novo registro de códigos, que contribuem para o entendimento e composição da personagem.
Tem uma parte que é uma preparação solitária. E nem tão solitária assim. Eu estudo sempre com a Helena Varvaki, minha professora há anos, e outra que é na troca com a equipe: atores, fotógrafo, diretores, maquilhagem, figurino, locação…
Acho que todas as personagens são uma versão de mim. Esses códigos a que me referi é que definem quem somos, ou seja, se determinada combinação fosse minha, assim eu seria Laura, Manuela, Bibiana, Marina, Maria Paula, Cora, Beatriz, Carolina, Emilia, Milene, Giovanna, Natacha, a Tônia, a Mariana …

Beatriz me marcou muito. Dessas que enumerei, ou outra que possa não ter mencionado, alguma lhe tocou de uma forma particular? Pelas características, pelo momento?
Todas tem seu legado em mim, não consigo e não posso diminuir a contribuição de cada uma na minha vida como um todo, pessoal e profissional. Um passo é que leva a ao outro. Um personagem te prepara para o outro. Mas estou muito movida pelo que o “Sob Pressão” (n.R. série atualmente em exibição na Globo) me mostra como um todo. O que a Carolina me ensina me sensibiliza muito. Um novo entendimento da profissão do ator, no alcance e interferência de uma obra, redimensiona valores de ordem humana. A série está moldando um olhar um pouco diferente. É um movimento renovar esse olhar, mantê-lo fresco e motivado. Me inspira uma nova perspectiva e sei que inspirações tem um ciclo e é natural que a demanda da rotina acabe burocratizando um pouco esse olhar novamente, mas é um trabalho meu não deixar isso acontecer, ou resgatar esse estado motivado sempre que preciso. Acho que o “Sob Pressão” também foi me mostrando isso, que qualquer hora é hora e que não precisamos idealizar, a gente não tem clareza sobre o efeito que um gesto pode ter na vida daquela pessoa naquele momento. Podemos oferecer algo muito simples para alguém em qualquer situação. É de fato uma sugestão de uma perspectiva, de um olhar mais participativo que pode ser integrado a nós e carregado para qualquer momento.

Sobre “Beatriz”, foi seu primeiro filme gravado na Europa? Como foi gravar em Lisboa e como foi compor esse personagem em particular, talvez o mais distante da imagem que temos de você, bastante reservada. O personagem é reservado até certo momento, mas decide entrar no jogo e arriscar.
Acho que liberdade sexual, a entrega para as fantasias, não é conflitante com uma característica reservada. E nesse momento eu percebo que na época em que filmamos eu tinha muito mais em comum com ela do que tenho hoje e do que achava que tinha, no período. Nas minhas relações interpessoais, a maior parte das vezes, eu assumia a mesma função que ela, acabava me responsabilizando pelos outros, propondo e resolvendo…planejando, ou pelo menos fazia isso com mais frequência naquele momento de vida. A “entrega absoluta” ficava voltada para algumas situações específicas. E também vivi uma experiência autodestrutiva sem conseguir interromper por conta própria. E acho que muitas mulheres podem ver algum em comum com a Beatriz. Tem muito do feminino nessa história. Foi a primeira vez que filmei na Europa, sim. Eu adorei. Foi muito relevante para a história e para o processo. Era importante que os personagens estivessem minimamente isolados, longe de suas referências ou outras figuras que pudessem ser associadas ou interferir.

Volta a Lisboa como convidada para estar presente no filme “As Boas Maneiras”, um filme de suspense que, pelo que li, não é um género muito comum ao cinema brasileiro. Quem é essa personagem meio fantasiosa?
O fantástico era justamente o elemento mais sedutor pra mim. Eu costumava amparar a construção dos meus personagens com um material muito concreto de pesquisa, mas essa personagem estava imersa em muita fantasia. Foi bastante instigante buscar outros recursos para dar solidez. A gente foi criando ou constatando os alicerces do fantástico na personagem com exercícios, um pouco através da lenda do lobisomem, pinçando um pouco o elemento animal dele, do comportamento do lobo e do lobisomem, muita pesquisa extraída dos sentidos, visão, audição, paladar, tato e olfato. Foram as cenas mais provocativas, mais instigantes pra mim, sem dúvida.
O roteiro em si era muito rico, reunia muita coisa, transitava por diversos lugares, permitia muita reflexão e parte dela, justamente em função da fantasia…o fantástico te liberta de muitas regras e a cabeça fica mais aberta pra sentir e pra atribuir significados.
Crítica social, cultural, comédia, drama, musical, suspense, terror…. Muito consistente, preciso, sensível e delicado. Esse filme é apaixonante. O terror não é tão popular como outros géneros, mas tem um nicho bem bonito no Brasil.

Ao fim de mais de uma década, de, como dito antes, personagens marcantes, você já tem papéis em feitos à sua medida, isto é, o autor escrevendo pensando em você?
Não posso afirmar que foram escritos para mim. O processo da escrita é do escritor e não sei ao certo como se dá esse jogo com a imagem durante ele, mas já recebi alguns roteiros em que os roteiristas diziam imaginar tal personagem sendo feito apenas por mim. Eu fico muito feliz de qualquer maneira que meu trabalho ocupe um lugar no imaginário das pessoas. Isso me revela consistência.

E comédia, não tem acontecido? A Tônia foi seu papel, que me recorde, mais virado para esse lado humor.
Fiz muitos filmes nos últimos seis anos. O Boas Maneiras, como disse, tem muitos traços diferentes e passa pela comédia também. Lancei um outro no ano passado, que gosto bastante, chamado Todo Clichê do Amor. É uma comédia escrita e dirigida por um grande amigo meu, Rafael Primot, por quem eu tenho imensa admiração. Foi muito divertido. São várias histórias de amor que se entrelaçam. Vivo uma mulher em crise no casamento porque deseja muito ter um filho, mas o marido não tem tanta certeza se quer. Ela é uma prostituta sadomasoquista e ele um ator porno. O filme é muito divertido e sensível ao mesmo tempo. Não faço distinção de género nas minhas escolhas, elas envolvem muitas variáveis e se me conectar por alguma razão, farei.

A pergunta é cliché, mas vamos na mesma: Que papel cabe no seu maior sonho?
Meus interesses não obedecem um critério muito específico, mas meus olhos brilham muito quando se deparam com algo novo. Novo em características, em linguagem…
O novo é desafiador, é obscuro, ele me obrigada a investigar perspectivas diferentes. Isso amplia minhas ferramentas e é muito enriquecedor em diversos aspectos, muito difícil, mas sedutor e gratificante.
Eu adoro perceber algo inédito em mim. E cada vez tenho vontade de ir mais além, descobrir em quais novos lugares antes inabitados por mim e em mim, eu consigo entrar. Todos os personagens anteriores me constituem e me transformam para os próximos também, me ensinam. E o aprendizado é um tipo de liberdade. Ele me permite ser cada vez mais livre nas minhas composições.

Para finalizar, não podia deixar de falar da música. Lançou três álbuns, o último em 2014. Sabendo que são duas carreiras exigentes, essa fica mais como quando você tem tempo?  É sensível ao ouvido a qualidade musical dos seus temas, me parecem bem pensados, nada feito às pressas. As pessoas já estão mais preparadas para quem tem múltipla valências, sem que você seja apelidada de atriz-cantora, mas uma pessoa que é atriz e cantora?
Eu sou movida musicalmente, ela é parte integrante de mim em tudo, em todos os departamentos de mim mesma. Minhas cobranças e meus desejos estão se modificando. Enquanto por um lado ela vem amadurecendo junto comigo, por outro ela ainda está no início da construção. O exercício da profissão é fundamental, a experiência vai lapidando a relação e isso é algo que eu sinto falta. Embora a minha relação com a música vá muito além do tempo vago, eu não me imponho lançar nenhum material como prioridade nesse momento. Acho que as coisas acontecem em um tempo próprio que nem sempre está alinhado com o nosso desejo.
Acredito que o mundo como um todo está cada vez mais se apropriando do múltiplo, e aceitando a flexibilidade dessa linha limite. Acho um movimento libertador para novas gerações, vai fazer muita diferença. Crescer confiando em uma percepção voltada para uma verdade interna e autêntica será um terreno muito mais fértil para o desenvolvimento do que quer que seja.

Para fechar, a título de curiosidade, por quê Estiano?
É uma homenagem ao meu pai. É o sobrenome do meu avô e meu pai tinha uma relação muito forte com esse sobrenome. Meu pai viveu a vida no comércio e sempre usou o Estiano como a marca dele. Estiano não está no meu sobrenome legal, mas é um nome da minha família. Eu não conheci meu avô, ele já era falecido quando nasci, mas quis homenagear o meu pai usando o Estiano em meu nome artístico.